A Democracia, A Filha que Nunca Nasceu – um conto do moçambicano Jeremias A. Muquito

Jeremias A. Muquito

Desde o primeiro encontro, Zacarias e Benedita sonhavam com uma filha. Não uma filha qualquer — queriam a menina perfeita, saudável, bonita, cheia de promessas. Mas infelizmente, a tradição e o convencional dizia o mesmo: Benedita não pode engravidar. O casal não parou de acreditar e lutar por esta criança. E chegou o mês que a Benedita não entrou no mês, não disse nada ao marido, não queria dar falas esperanças. Sucedeu o mesmo no outro mês, ela arriscou:

‎— Acho que estou grávida, marido.

‎Aquilo era contra tudo o que se acreditava naquele momento, desde o curandeiro, o padre, o médico e o político se interessaram pela gravidez. Cada um interpretava o fenômeno como bem entendia. Mas foram os políticos que assumiram o papel de apadrinhar a gravidez e, consequentemente, a menina que nasceria.

— Ela vai se chamar Democracia — disseram.

— Por que este nome? — curioso, indagou Zacarias.

‎Responderam eles que era porque quando a Democracia nascer, o povo vai deixar de ser apenas espectador e passar a ser protagonista. As decisões do governo não vão ser mais tomadas em salas fechadas, mas sob o sol da transparência pelo próprio povo.

— Será o povo, e não o governo de um determinado partido, que vai escolher o futuro presidente do país — concluíram.

‎Os meses passaram. E a gravidez de Benedita crescia aos olhos de todos. Alguns juravam que viam os pés de Democracia mexendo debaixo do vestido da mãe. Outros diziam que ela chutava com força, sinal de que seria “uma menina firme, que não se deixaria manipular por qualquer um”, uma esperança para o povo.

‎Na noite das contrações, no lugar das parteiras que os políticos haviam prometido, um grupo de homens engravatados apareceu na porta. Diziam-se “representantes do estado” e informaram, com palavras do dicionário, que a criança seria levada assim que nascesse.

‎— É para o bem de todos — disse um deles com ar sério. — Democracia é muito importante para ficar apenas nas mãos de dois particulares. O Estado vai cuidar bem dela.

‎Zacarias tentou protestar, Benedita chorou, mas logo a casa se encheu de advogados, jornalistas e curiosos que garantiam que Democracia, uma vez sob tutela, traria oportunidades para todos e que eles, pelo bem da nação, não deveriam se alarmar.

‎No entanto, anos se passaram e nada. Ninguém via a menina, apenas ouviam rumores sobre ela. “Está a aprender a andar”, dizia-se. “Já sabe falar três línguas.” Mas cada vez que Zacarias pedia para vê-la, recebia papéis com carimbos, assinaturas e promessas de visita “em breve” que viraram “nunca”.

‎Quando mais o Zacarias e Benedita insistiam em procurar ver a filha, novas histórias eram contadas, até um médico foi apresentado ao casal para de facto informar-lhes o que de facto estava a acontecer:

Diagnóstico: Gravidez psicológica de longa duração. 

Causa: Ansiedade crônica e excesso de confiança em promessas milagrosas; tendência a acreditar em contos de fada sobre justiça, transparência e poder compartilhado. 

Conclusão: A paciente e seu parceiro, ao alimentar expectativas irreais, desenvolveram sintomas graves de gestação imaginária de uma filha que incorporaria todos os seus desejos de mudança imediata.. 

Observação: A criança chamada “Democracia” nunca nasceu.

Recomendação: parar de sonhar alto.

— Podemos procurar uma segunda opinião médica? — perguntou a Benedita?

— Todos os médicos do país dariam o mesmo diagnóstico — concluiu o médico.

‎O silêncio caiu pesado. Zacarias sentiu o chão sumir. Benedita olhou para o próprio ventre e percebeu que estava tão liso quanto antes.

‎— Passámos todos esses anos a preparar o enxoval… para um fantasma?

‎Não houve enterro nem certidão de óbito. Afinal, como enterrar alguém que nunca existiu? O berço ficou vazio, o cobertor apodreceu no armário. Com o tempo, Benedita e Zacarias entenderam que, de facto, a Democracia nunca tinha nascido.

***

 

Autor

  • Jeremias A. Muquito

    Jeremias A. Muquito, pseudônimo de Jeremias António Moquito, nasceu em 8 de setembro de 1992, é natural de Angoche, na província de Nampula, Moçambique. Iniciou sua paixão pela escrita criando webnovelas em blogs de internet, explorando desde cedo o poder da narrativa para envolver leitores. Em 2025, foi finalista do Prêmio Literário Carlos Morgado com o conto “Abubakar, o rapaz do olhar conhecido”. É também um dos autores da antologia Novas Vozes Novas Estórias, editada e chancelada pela Fundação Carlos Morgado, consolidando-se como uma das novas vozes da literatura moçambicana contemporânea.

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Afonso Sabão

Muito excelente!

Meus parabens Jeremias A. Muquito

JA Muquito

Obrigado, filhão

Octaviano Joba

Um conto interessante, que chama-nos para reflexão! Parabéns Geremias A. Muquito pelo conto.

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