A dor de Cabo Delgado
Por Afonso P. Sabão
Há lugares em Moçambique onde o silêncio não é paz — é medo. Cabo Delgado é um desses lugares. No ar, o cheiro da terra queimada mistura-se com o som distante de passos apressados de quem foge mais uma vez. As aldeias que outrora pulsavam com o ritmo dos mercados e das vozes das crianças agora repousam em ruínas. Entre as cinzas, a vida insiste em permanecer.
Desde 2017, a província tornou-se palco de uma guerra sem rosto e sem piedade. Tudo começou com murmúrios de rebelião de jovens que desapareceram das suas casas, atraídos por promessas que misturavam fé, poder e desespero. Hoje, esses murmúrios tornaram-se gritos. São os mesmos jovens, alguns ainda adolescentes, que, armados e desorientados, semeiam o terror nas aldeias.
Os ataques vêm como o vento: ninguém sabe de onde sopram, mas todos sentem o seu rasto. As casas ardem, as escolas tornam-se cinzas. E o povo corre. Corre para onde ainda há esperança, se é que ela ainda existe. Mães com crianças às costas, pais de mãos vazias, anciãos que olham para trás e já não reconhecem a terra onde nasceram.
O sol nascia cansado sobre as aldeias feridas de Cabo Delgado. Entre o fumo das casas queimadas e o pó das estradas abandonadas, via-se o vulto de Mariamo, uma mulher que perdera o marido e dois filhos no último ataque. Caminhava devagar, levando ao colo seu filho Momade de 5 anos de idade, que já aprendera a chorar sem lágrimas. A aldeia chamava-se Mueda, mas podia ser qualquer outra — Palma, Mocímboa, Macomia, porque a dor já não conhecia fronteiras.
Enquanto sentava-se junto a um poço destruído, Mariamo conversava com um jovem ao seu lado, era o Joaquim, um jovem estudante universitário, fazia trabalho de campo sobre a necessidade de diálogo e reconciliação nacional, que deveria apresentar nas XI Jornadas Científicas na sua faculdade. Tentando Mariamo, transformar em palavras a dor que parecia impossível de explicar:
— Quando ouço os políticos e os académicos deste país dar discursos sobre “unidade nacional” e diálogo inclusivo, sinto apenas uma mentira disfarçada de esperança. Falam por aí como se Moçambique fosse um só. Mas olhe ao seu redor… veja estas casas queimadas, veja estas ruas vazias. Aqui, diálogo é o som de uma panela vazia, é o silêncio dos que governam de longe. O eco das promessas nunca chega até nós. A unidade de Moçambique é uma palavra escrita em relatórios e repetida nas celebrações oficiais, mas nunca vista nos olhos do povo que clama por fome. Meu filho, esse país está sangrando em silêncio.
Com a voz trêmula, perguntou Joaquim:
— E ainda assim… consegue encontrar forças para seguir?
— Força? Respondeu a Mariamo. Talvez seja isso que nos mantém vivos. Plantamos milho na terra marcada pela guerra. Reerguemos paredes que o fogo derrubou. Cada gesto, cada semente, é resistência. É uma forma de dizer ao mundo que não vamos desaparecer.
— E o medo? Perguntou Joaquim.
— O medo está sempre aqui. Mas aprendemos a caminhar com ele. Porque se pararmos, se deixarmos o medo nos vencer, Cabo Delgado morre de vez.
Com uma voz de tristeza, disse Joaquim:
— Eles falam de reconciliação e unidade nacional. Mas eu vejo o contrário. Somos unidos apenas nas cerimónias e nos relatórios. Mas aqui, a realidade é outra: é medo, é fome é sangue e luto.
— Falamos de unidade, mas não a vivemos, dizia, olhando o horizonte. Falamos de diálogo, mas não nos ouvimos. Falamos de Moçambique, mas esquecemo-nos dos moçambicanos.
Naquele fim de tarde, enquanto o vento soprava com cheiro de fumaça, ouviu-se o som de tiros próximos. Mariamo agarrou o seu filho com mais força.
— Tá tudo bem, filho, eu estou aqui… E disse ao Joaquim: Vamos correr, jovem.
Ela sabia que cada segundo contava. O chão tremia com passos apressados; gritos misturavam-se ao som dos disparos. Entre as casas em ruínas, Mariamo encontrou outros moradores, correndo em silêncio, carregando crianças, animais, pouco do que podiam salvar.
Caminharam entre árvores queimadas, evitando os campos abertos. A criança no colo de Mariamo começou a soluçar.
— Mamã, mamã, estou com medo…
— Eu sei, meu filho. Mas precisamos ser fortes, cada passo é sobrevivência.
O grupo alcançou uma pequena elevação. De lá, podiam ver as chamas que engoliam a aldeia ao longe. Tudo o que havia sido construído com suor e esperança estava consumido. Alguns choravam em silêncio; outros olhavam o horizonte, tentando entender como a violência podia continuar sem que ninguém interviesse.
Com uma voz de tristeza, Mariamo sussurrou:
— Veja isso, o que nós fizemos para merecermos tudo isso, e como vamos recuperar tudo aquilo que perdemos?
A dor de Cabo Delgado não é apenas física; é espiritual, moral e silenciosa. É a dor de quem vê a sua casa transformada em pó, o seu filho levado por insurgentes, a sua fé testada até o limite. É a dor de um país que ainda não aprendeu a cuidar das suas margens onde a pobreza se tornou o terreno fértil para o desespero e a violência.
Enquanto o governo fala de investimentos, gás e reconstrução, o povo fala de fome e luto. O diálogo que se proclama nos palcos políticos raramente chega às aldeias. A “unidade nacional” tornou-se uma frase de conveniência repetida, mas não sentida. O país parece dividido entre a compaixão e o cansaço, entre a esperança e a descrença.
E enquanto o mundo decide se olha ou não para o norte de Moçambique, o povo segue. Caminha sobre as cinzas, ergue as paredes outra vez e aprende com o coração em pedaços que viver, às vezes, é o maior acto de coragem. Porque, no fim, as cinzas não são apenas o que resta do fogo, são também o início de algo novo, se houver quem tenha coragem de reconstruir.
Vou contar tudo…
— Afonso P. Sabão
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Muito inspirador a poesia que conta sobre a realidade actual da província de cabo delgado mediante ao frequentes ataque que se fazem sentir por lá
Pois é!