“Esta é a parte que me cabe nesse minifúndio.”
Uma numerosa família de agricultores lá no sertão de Minas, depois de falecidos o pai e a mãe, decidiram fazer o inventário e cada um dos filhos e filhas pegar o quinhão de terra que lhes era devido. Assim, acabariam com tanta briga e inimizade entre a família por conta da herança.
Quando levantaram a documentação no cartório, descobriram que a metade do sítio havia sido vendida há muitos anos para o marido de uma das irmãs. Portanto, sobrava a outra metade para os demais irmãos e irmãs, inclusive para a irmã cujo marido era dono de 50% da propriedade. E eram muitos irmãos e irmãs morando com maridos, esposas e filhos na mesma velha casa de taipa deixada pelos pais.
Pesquisando um pouco mais, descobriram que o pai deles tinha outros três irmãos com direito a igual quinhão daquela metade. Se antes cada um pretendia vender o seu pedacinho ou construir pelo menos uma casinha e cultivar uma tímida horta, agora via seu sonho se transformar numa amarga realidade. Se fosse o terreno inteiro, como pensavam antes, até que sobraria um pedacinho razoável pra cada um fazer uma casinha de dois cômodos e uma pequena plantação para ajudar no seu sustento e da sua família.
Se antes ficaram preocupados ao saber que só teriam direito à metade do sítio, a preocupação aumentou quando viram que teriam apenas um quarto desta metade, e que este quarto de metade ainda seria dividido para tantos irmãos e irmãs. Pra piorar a desilusão, foram informados que durante muitos anos, desde que seus pais haviam morrido, todo o imposto total do terreno sempre havia sido pago pelo cunhado dono da metade. Aí, perceberam que nenhum deles talvez nem teria mais onde morar.
Depois de feita a divisão territorial, um dos irmãos, cabisbaixo, pegou uma velha pá e uma picareta e foi para a baixada do quintal. Seus irmãos, irmãs, cunhadas, cunhados e sobrinhos o seguiram, curiosos. Ele tirou do bolso da surrada calça uma fita métrica, mediu o chão e demarcou um pequeno retângulo com a picareta. Quando começou a cavar, um irmão perguntou:
— O que está fazendo?
Ao que ele respondeu:
— Esta é a parte que me cabe nesse minifúndio, e que não tem valor de venda. Não dá pra construir sequer uma casinha pra cachorro. Vocês que têm esposa, marido e filhos terão ainda mais problemas, mas eu, que já passei dos 60 e não tenho herdeiros, decidi o que fazer com a minha parte de um metro de largura por dois metros de comprimento. Aqui será a minha cova, a minha última morada. O espaço é suficiente pra um morador deitado. E ainda sobram alguns centímetros pra fazer uma cerquinha nas laterais.
Gente, estou me vendo na pele deste matuto.
Pelo que já li, a profundidade de uma sepultura para um adulto é de 1,70 m e uma cova possui normalmente 2,20 m de comprimento por 0,80 m de largura. Para as crianças, as sepulturas têm cerca de 1,50 de profundidade e 50 centímetros de largura.
Descobri também que as sepulturas do Antigo Egito eram chamadas de “casa da eternidade”. Existem muitas sepulturas ao longo do Rio Nilo, datadas das mais variadas épocas e períodos.
Os locais onde os mortos do Antigo Egito eram enterrados sofreram muitas mudanças com o passar dos tempos. As primeiras sepulturas eram simples e modestas.
Hoje as famílias mais abastadas, no mundo inteiro, compram terrenos enormes nos cemitérios e constroem seus mausoléus, com as campas decoradas com belos textos com pó de ouro nas lápides e enormes esculturas assinadas por renomados artistas. Ali repousam muitos familiares, dividindo os luxuosos espaços, mas sem ficar amontoados como os pobres. Os defuntos ricos compartilham espaços revestidos de mármores importados, distantes o suficiente um do outro pra não se incomodarem (como assim?) com a presença do parente.
Eu, depois de morto, peço que façam o que quiserem do meu corpo. Não quero incomodar, só lhes peço uma coisinha: não me deixem jogado numa esquina de rua qualquer ou numa vala a céu aberto, para que o meu cheiro de carniça não lhes incomode e as moscas que pousarem em mim não levem doenças pra suas casas. Não precisam sequer gastar dinheiro com uma cremação, com caixão, flores, com as taxas de funerária e com uma cova rasa no cemitério.
Sempre deixo alguns trocados no bolso, pensando exatamente em minimizar os problemas que lhes causarei quando eu morrer. Peguem estes trocados, comprem alguns litros de álcool, uma caixa de fósforos, arrastem-me para um canto qualquer, encharquem o meu corpo e ponham fogo. Repitam o processo até não sobrar mais nada de mim além das cinzas. Estas, o vento e a chuva se encarregarão de dar fim. Depois, virem as costas, vão viver suas vidas e me esqueçam.
Caso sobrem alguns trocados, estes serão de quem me incendiou, como agradecimento pelo favor que me fez.

Muito boa crônica. Uma literatura com propriedade. Entrando para o time dos grandes cronistas mineiros. Parabéns, D. Remisson! Obrigado.
Obrigado, Dom Celso. Sinto-me privilegiado quando recebo um comentário assim, vindo de um dos maiores poetas brasileiros, dono de um estilo único e de uma escrita tão interessante.Um abraço.
Um belíssimo texto, Remisson!
Obrigado, Joba! Um abraço e bom final de quarta-feira.
Uma crônica e muitas reflexões. Confesso que tenho pensado muito no assunto. Deve ser resultado dos anos se acumulando. Parabéns pelo texto!
Texto fantástico!