Herberto Helder — Seleção de poemas
Apresentação biobibliográfica e poemas
Herberto Helder nasceu em 1930 no Funchal, onde concluiu o 5.º ano. Em 1948 matriculou-se em Direito, mas cedo abandonou esse curso para se inscrever em Filologia Românica, que frequentou durante três anos. […] Em 1969 trabalhou como diretor literário da editorial Estampa. […] Em 1994 foi-lhe atribuído o Prémio Pessoa, que recusou. Faleceu em Cascais a 23 de março de 2015, tinha 84 anos. “Herberto Helder”. In Assírio & Alvim. http://www.assirio.pt/autores/ficha?id=7053 [Consult. 2017-02-10]
Para Fernando Guimarães (cf. A Poesia Contemporânea Portuguesa e o Fim da Modernidade, 1989), na poesia de Herberto Helder confluem duas tendências poéticas: uma de libertação da palavra, que liga a sua obra à experiência surrealista pelo encontro da imaginação com a linguagem e pela aproximação ao poder mágico da palavra; e uma poética de encontro com a palavra, que encerra o poeta no domínio da linguagem, pela experimentação lúdica, pela criação de grandes espaços metafóricos construídos a partir da recorrência de temas e termos condutores. “Herberto Helder”. In Infopédia. https://www.infopedia.pt/$herberto-helder [Consult. 2017-02-10]
Algumas obras: A Colher na Boca, 1961; Lugar, 1962; A Máquina Lírica, 1964; Húmus, 1967; O Bebedor Noturno, 1968; Vocação Animal, 1971; Cobra, 1977; O Corpo o Luxo a Obra, 1978; Photomaton & Vox, 1979; Flash, 1980; A Plenos Pulmões, 1981; A Cabeça entre as Mãos, 1982; As Magias, 1987; Última Ciência, 1988; Do Mundo, 1994; Doze Nós Numa Corda: poemas mudados para português, 1997; Fonte, 1998; A Faca Não Corta o Fogo – Súmula & Inédita, 2008; Servidões, 2013; A Morte Sem Mestre, 2014; Poemas Canhotos, 2015; Letra Aberta, 2016.
Não toques nos objetos imediatos
Não toques nos objetos imediatos.
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
são loucos todos os objetos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.
A boca fica em chaga.
HELDER, Herberto, 2004. “Última Ciência”.
Laranjas instantâneas
Laranjas instantâneas, defronte – e as íris ficam amarelas.
A visão da terra é uma obra cega. Mas as laranjas
atrás das costas, as mais
pesadas, as mais
lentamente maduras, as laranjas que mais tempo demoram
a unir o dia à noite, que têm uma força maior em cima
das mesas, essas.
Operatórias. São laranjas ininterruptas trabalhando em imagens
as regiões ofuscantes da cabeça.
Enriquecem o ofício sentado com um incêndio
quarto a quarto da alma. Enriquecem, devastam.
– Constelação ao vento avassalando a casa.
HELDER, Herberto, 2004. “Última Ciência”. In Ou o Poema Contínuo. Lisboa: Assírio & Alvim (p. 443-444)
O Poema
I
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
rios, a grande paz exterior das coisas,
folhas dormindo o silêncio
– a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as casas deitadas nas noites
e as luzes e as trevas em volta da mesa
e a força sustida das coisas
e a redonda e livre harmonia do mundo.
– Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
– E o poema faz-se contra a carne e o tempo.
HELDER, Herberto, 2004. “A Colher na Boca”. In Ou o Poema Contínuo. Lisboa: Assírio & Alvim (p. 28)
As musas cegas – VII
Bate-me à porta, em mim, primeiro devagar.
Sempre devagar, desde o começo, mas ressoando depois,
ressoando violentamente pelos corredores
e paredes e pátios desta própria casa
que eu sou. Que eu serei até não sei quando.
É uma doce pancada à porta, alguma coisa
que desfaz e refaz um homem. Uma pancada
breve, breve –
e eu estremeço como um archote. Eu diria
que cantam, depois de baterem, que a noite
se move um pouco para a frente, para a eternidade.
Eu diria que sangra um ponto secreto
do meu corpo, e a noite estala impercetivelmente
ou se queima como uma face. Escuta:
que a noite vagarosamente se queima
como a minha face.
Essa criança tem boca, há tantas finas raízes
que sobem do meu sangue. Um novo instrumento,
uma taça situou-se na terra, e há tantas
finas raízes que sobem do meu sangue. E uma candeia,
uma flor, uma pequena lira,
podem erguer-se de um rio de sangue, sobre o mundo –
um novo instrumento rodeado pelas campânulas
inclinadas, por ligeiras pedras húmidas,
pelos animais que movem no seu calmo halo de fogo
as grandes cabeças sonhadoras.
Essa criança dorme sobre os meus lagos de treva.
Pensei algumas palavras para oferecer-lhe. Esqueço-me
tantas vezes dos mistérios dessa porta.
Porque então é muito estreita com seus espelhos
detrás, com o vestíbulo frio.
Mas é tão belo uma criança ainda enevoada,
uma criança que ascende com uma
grande música
desta rede de ossos, deste espinho de sexo,
da confusa pungência, escuta: da pungente
confusão
de um homem restrito com a sua vida tão lenta.
Essa criança é uma coisa que está nos meus dedos.
Às vezes debruço-me sobre as cisternas, e as vertigens,
e as virilhas em chama.
É a minha vida. Mas essa criança
é tão brusca, tão brusca, ela destrói e aumenta
o meu coração.
No outono eu olhava as águas lentas,
ou as pistas deixadas na neve
de fevereiro, ou a cor feroz,
ou a arcada do céu com um silêncio completo.
Misturava-se o vinho dentro de mim, misturava-se
a ciência da minha carne
atónita. Escuta: cada vez a minha vida
é mais hermética.
Essa criança tem os pés na minha boca
dolorosa.
Se ela um dia adormecer com cerejas junto à respiração
pequena, e sonhar
estes imensos arcos que os séculos vão colocando
sob os astros – e se de tudo
a sua cabeça estremecer como numa loucura,
com altos picos em volta, com enormes faróis
acendendo e apagando – escuta: se essa criança
imaginar, e todas as cordas se juntarem tensamente
para que ela invente o seu próprio rio
sem nome –
será ainda que do meu sangue se erguem finas
raízes, e o tenebroso tumulto
das minhas sombras
está no fundo, no fundo da sua ingénua vida,
da sua terrível vida sem remédio.
Se ela morrer, escuta, será que a minha boca
diz lá em baixo
essas majestosas e violentas palavras
dos poemas.
Essa criança que aperta as veias que iluminam
a minha garganta. Ela dorme. Escuta:
a sua vida estala como uma brasa, a sua vida
deslumbrante estala e aumenta.
Se um dia os archotes incendiarem essa boca,
e as faúlhas cercarem
o silêncio tremendo dessa pequena boca, escuta:
a minha boca, lá em baixo, está coberta de fogo.
HELDER, Herberto, 2004. “A Colher na Boca”. In Ou o Poema Contínuo. Lisboa: Assírio & Alvim (pp. 92-95)
hoje, que eu estava conforme o dia fundo
hoje, que eu estava conforme ao dia fundo1,
fui-me a reler alguns dos meus poemas,
e então caí abaixo de mim mesmo,
e era só o que faltava:
sáfara2 safra3
– nem as mãos me serviam,
nem a dor escrita e lida me serve para nada
HELDER, Herberto, 2013. Servidões. Lisboa: Assírio & Alvim (p. 64)
já não tenho mão com que escreva
já não tenho mão com que escreva nem lâmpada,
pois se me fundiu a alma,
já nada em mim sabe quanto não sei
da noite atrás da luz: livros, frutas na mesa, o relógio que mede
minha turva eternidade
e o tempo da terra monstruosa,
já nada tenho com que morrer depressa,
exceto
tanta hora somada a nada:
acautela a tua dor que se não torne académica
HELDER, Herberto, 2013. Servidões. Lisboa: Assírio & Alvim (p. 73)
Para o leitor ler de/vagar
Volto minha existência derredor1 para. O leitor. As mãos
espalmadas. As costas
das. Mãos. Leitor: eu sou lento.
Esta candeia que rodo amarela por fora,
e ardentescura por dentro.
Candeia tão baixa-viva. Sou lento numa luminosidade
como em meio de ilusão.
Volto o que é um rosto ou um
esquecimento. Uma vida distribuída
por solidão.
Sou fechado como uma pedra pedríssima. Perdidíssima da boca transata. Fechado como uma. Pedra sem orelhas. Pedra una reduzida a. Pedra. Pedra sem válvulas. Com a cor reduzida a. Um dia de louvor. Proferida lenta. Escutada lenta.
– Todo o leitor é de safira, é
de. Turquesa.
E a vida executada. Devagar.
Torna-se a infiltrada cor da. Pedra
do leitor.
Volto para essa pedra absoluta. Relativa
à minha pedra.
Minha pedra pensada com a forma
de. Uma lenta vida elementar.
Leitor acentuado, redobrado leitor moroso.
Que entende o relato sem poros,
o mês arroz dealbado2 sobre a pedra
sem orelhas, pedra sem boca. E que desce os dedos
sobre. Meus dedos pelo ar. E toca e passa.
Pelas pálpebras paradas. Pelos
cerrados lábios até às raízes.
E cai com seus dedos em meus dedos.
E espera devagar.
Leitor que espera uma flor atravancada,
balouçando baixa
sobre. Mergulhados
filamentos no terror
devagar
Mas que espera. Doce. Contra o hermético
movimento do mundo.
E que o mundo movimenta contra.
As ondas de Deus auxiliado
auxiliar. E que Deus movimenta contra. Suas ondas
muito lentas, amargas ondas muito.
Antigas, ignoradas, corridas. Sobre
a primitiva face do poema. Leitor
que saberá o que sabe dentro. Do que sabe
de mais selado. E esperará
dias e anos dobrado, leitor. Varrido
pelo movimento dos dias.
Contra o movimento noturno do. Poema devagar.
E que espera.
E para quem volto. Muitas coisas sobre
Uma coisa. Volto
uma exaltante morte de Deus. Auxiliado
auxiliar. O espírito, a pedra.
Do poema.
Leitor à minha frente. Vindo
do mais difícil lado
das noites. Ainda tocado e molhado
de suas flores aniquiladas.
Rodo. Para esse rosto difuso e vagaroso
Meu sono.
A fantasia minuciosa. A oblíqua inovação.
A solidão. Trémula devagar.
Leitor: volto
para ti. Um livro que vai morrer depressa.
Depressa antes. Que a onda venha, a onda
alague: A noite caída em cima de teus dedos.
De encontro à cor de encontro à. Paragem
da cor. Este livro apertado nas estrelas
da boca, estrelas.
Aderentes fechadas. Por fora
leves às vezes, presas.
Para eu batê-las durante o tempo.
Eterno, o tempo. De uma onda maior que o nosso
tempo. O tempo leitor de um. Autor.
Ou um livro e um Deus com ondas de um mar
mais pacientes. –
Ondas do que um leitor devagar.
HELDER, Herberto, 2009. “Lugar”. In Ofício Cantante – Poesia Completa. Lisboa: Assírio & Alvim (pp. 128-131)
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