Lembremo-nos dos nossos mortos.
    
Da metade que sobrou, corto mais um pedaço, retiro o miolo. Fico em dúvida: mortadela, queijo ou manteiga? Uma com manteiga, a outra com queijo. Pronto. A xícara vazia recebe uma generosa dose de café e três gotas de adoçante. Antes o adoçante, assim não sujo a colher. Quando há queijo fresco, é nessa hora que entra. Se não, pois está o olho da cara, sigo para o Cafofo com a xícara em punho. Leio o jornal, rio de bobagens e começo o dia. Assim, todos os sábados e domingos. Durante a semana, a pegada é outra.
As nuvens nunca repetem as mesmas formas. Pensei nisso diante da meticulosa maneira como tomo meu café — sempre do mesmo jeito, como em um ritual. O ser humano gosta de repetições, sobretudo quando a idade avança. Modificações, por menores que sejam, causam estresse. Olhem o banho: sempre igual. O modo de segurar a toalha, de se enxugar.
Li em algum lugar que é bom mudar os gestos de rotina. Certa vez, em Indaiatuba, adotei um exercício matinal: comprei cadernos de caligrafia e escrevia com a mão esquerda — destro que sou. Se deu resultado? Talvez. Depois, desencanei. Agora, penso em voltar a treinar o lado direito do cérebro.
Os jacarandás-mimosos estão floridos. Sei que não tem nada a ver com baguete, caligrafia ou banho. Mas estão lindos, e a crônica precisa seguir o seu caminho. Não sou eu que vou mudar. Imaginei, após o banho, tomar meu café numa varanda com vista para uma floresta de jacarandás-mimoso em flor.
Mas não. Da cozinha do meu apartamento, nada vejo; da sala, só os prédios cinzentos que se estendem até o horizonte. As antenas da Paulista perfiladas não têm flores — e o barulho do trólebus não lembra nenhum padeiro em seus afazeres.
O mundo da literatura é outro.
Fernando Dezena
São Paulo, SP, 2 de novembro de 2025.
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