Acesso ou cadastro Autor(a)

Marina: guardiã do tempo – por Flávio Viegas Amoreira

Marina: guardiã do tempo

Marina Silva - Guardiã do tempo Ecologia era o termo disseminado na década de 1970, ao mesmo tempo em que o denominado Clube de Roma, composto por notáveis especialistas, alertava para o insustentável crescimento populacional em uma casa exangue. Não tanto a demografia, mas os hábitos dos habitantes insaciáveis da Terra levariam à derrocada das civilizações. O visionário cineasta Pier Paolo Pasolini apontava o germe do mal: o consumismo de coisas e pessoas em nome de um equivocado progresso.

Faz 50 anos hoje que ele foi trucidado numa praia deserta do Lácio. Incrível que as evidências não tenham apelo e que a ecologia ainda soe como exotismo para o grande público. Será que velhos reacionários e negacionistas dormem vendo o futuro de seus netos ser invalidado pelo colapso iminente? Será que sucumbiremos à maldição de Cassandra: conhecer a verdade da ciência e não lhe dar ouvidos em nome do lucro imediato?

Poetas são antenas da raça, e me converti à prioridade ambiental lendo, muito jovem, Thoreau: “De que vale uma casa se você não tem um planeta tolerável onde a colocar?” Minha admiração por Marina Silva advém de sua dimensão poética da política — no sentido mítico e simbólico — como visão além do fugaz e superficial. O olhar além da tribo, do território, de estreito horizonte, viabilizando o espaço público para a partilha do sensível — primeiro e último: a Terra, para sempre e para todos.

As questões humanas sempre foram espaço-temporais, em comunhão com a chamada natureza. Os xamãs e os profetas sempre o reafirmaram, até que perdemos a medida do sagrado — e os poetas deixaram de ser ouvidos. A dessacralização foi a senha para a degradação. Marina, amiga de Thiago de Mello, Marina ela mesma poeta, sabe que, se ainda é tempo, não devemos flertar com o apocalíptico — nem por omissão, nem por excesso.

Como dizia Thiago: “Faz escuro, mas eu canto”, porque é preciso sermos “resistentes como a água” — se o grão não morre. Não se deve confundir o poeta com o lírico: poeta é pedra, fonte, ressoa, vibra, imanta e cria. Não esquecer que nosso conterrâneo santista, o Patriarca Bonifácio, era poeta e, há duzentos anos, vaticinava: “No Brasil, a natureza é amiga do homem; mas o homem é ingrato às meiguices da natureza.”

Nos fiamos muito nessa trágica dicotomia, nós e a natureza, e nos perdemos na crença do saciar inesgotável de nossa bruteza. Marina, leitora de Erich Fromm, sabe que só é possível amar um indivíduo se esse amor estiver associado a um profundo amor a todos os seres e criaturas, amplificando e retroalimentando, universalmente, nosso afeto particular.

Quão desagradável soa anunciar a catástrofe, ainda que não perdê-la de vista seja o maior motor para evitá-la, e tornarmo-nos reféns de sua inevitabilidade. Talvez o niilismo das novas gerações já soe como desistência do futuro. Nosso presente se estreita. Quão difícil é abandonar as sacolas plásticas, abdicar de automóvel, ao passo que não ter filhos tem sido um sintoma preventivo, mais ou menos consciente, que espreita a desolação.

Qual o liame de nosso destino: superação ou convivência com a resiliência? Determinante foi o encontro da ministra com o Semesp — entidade que reúne instituições de ensino superior, presidida pela educadora e intelectual ambientalista Lúcia Teixeira —, no fórum que congrega todo o pensamento e a ação educacionais agora organicamente envolvidos com o papel de liderança do Brasil na causa das causas: nossa sobrevivência num planeta habitável.

Sem personalismo, Marina encarna o que nos resta de mobilização holística, acima dos sectarismos. Gaia só une! A nós, homens partidos num chão dilacerado.

Flávio Viegas Amoreira

Escritor, membro das academias de letras de Santos e Praia Grande e curador da Casa das Culturas de Santos.


Foto do autor

Flávio Viegas Amoreira, nascido em Santos em 1965, é escritor, poeta, contista, romancista, dramaturgo e jornalista. Ao longo de sua carreira, foi parceiro estético de importantes compositores, como Gilberto Mendes e Livio Tragtenberg, com quem desenvolveu projetos de integração entre literatura e música. Em 2022, por ocasião do centenário de Gilberto Mendes, o escritor publicou uma biografia em homenagem ao músico e maestro santista. Ativo como agitador cultural, desenvolve projetos em São Paulo, Rio de Janeiro e no Litoral Paulista, promovendo discussões sobre artes de vanguarda, saraus poéticos e oficinas de criação literária. Sua produção literária inclui 14 livros, entre eles Maralto, A Biblioteca Submergida, Contogramas, Escorbuto, Cantos da Costa, Edoardo, o Ele de Nós, Oceano Cais, Desaforismos e Pessoa doutra margem. Amoreira também participou de diversas antologias de poesia e conto, incluindo Geração Zero Zero, que reúne escritores inovadores lançados na primeira década do século XXI, organizada pelo crítico Nelson de Oliveira.[5] No teatro, além de atuar como dramaturgo, concedeu uma polêmica entrevista ao diretor Antônio Abujamra no programa Provocações, da TV Cultura, onde discutiu temas relevantes para a literatura e a cultura brasileira. Seu engajamento nas universidades, nas revistas, nas redes sociais e na criação de arte digital destaca-se, reafirmando-o como uma das figuras mais dinâmicas da Novíssima Literatura Brasileira. Flávio Viegas Amoreira é associado ao movimento cultural santista que surgiu no final dos anos 70 e início dos anos 80, período marcado por desafios na cena artística e política pós-abertura do regime militar. Seu trabalho é caracterizado por uma profunda ligação com a geografia de Santos, cidade que inspira sua poesia e sua crítica social, frequentemente permeada por metáforas marítimas e um olhar atento às transformações culturais. Ao longo de sua carreira, Amoreira também atuou como professor em oficinas literárias. Em 2024, Flávio Viegas Amoreira foi eleito para a Academia Santista de Letras (ASL), ocupando a cadeira 25, cujo patrono é o poeta Vicente de Carvalho, consolidando sua influência no cenário literário. Flavio Viegas Amoreira tem se dedicado ao resgate de artistas ligados à cidade de Santos, destacando sua importância na literatura brasileira. Em 2024, organizou Vicente de Carvalho redescoberto (Editora Costelas Felinas), publicado no centenário da morte do poeta. Atualmente, Flávio Viegas Amoreira é colunista do jornal santista A Tribuna.

Compartilhe esse post!

5 1 voto
Classificação do artigo
Inscrever-se
Notificar de
guest
1 Comentário
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Marise

Muito bom!👏👏👏

Outros posts

Cadastre-se como autor(a) no Ver-O-Poema.

Após se cadastrar você poderá enviar suas próprias postagens e nós cuidaremos das configurações.

assine nossa newsletter

postagens recentes

comentários recentes

divulgação

Cabeza de serpiente emplumada, novo livro de poesia de Claidio Daniel (Cajazeiras: Arribaçã, 2025)

vendas

Em Pssica, que na gíria regional quer dizer ‘azar’, ‘maldição’, a narrativa se desdobra em torno do tráfico de mulheres. Uma adolescente é raptada no centro de Belém do Pará e vendida como escrava branca para casas de show e prostituição em Caiena.
Um casal apaixonado. Uma intrusa. Três mentes doentias. Agora em uma edição especial de colecionador com capítulo extra inédito, conheça o thriller de estreia de Colleen Hoover, que se tornou um fenômeno editorial e best-seller mundial.
Editora Rocco relançou toda a sua obra com novo projeto gráfico, posfácios e capas que trazem recortes de pinturas da própria autora
Considerado o livro do ano, que virou febre no TikTok e sozinho já acumulou mais de um milhão de exemplares vendidos no Brasil.
A Biblioteca da Meia-Noite é um romance incrível que fala dos infinitos rumos que a vida pode tomar e da busca incessante pelo rumo certo.
Imagine parar por alguns instantes e desfrutar de um momento diário com alguém que te ama e tem a resposta para todas as tuas aflições.
1
0
Adoraria saber sua opinião, comente.x