— A data prevista de parto é 25 de Junho,— disse a parteira para Dona Judith, enquanto fazia anotações na ficha pré-natal. Tendo terminado de fazer as devidas anotações, entregou-a à D. Judith, que foi para casa apressada e animada, com alegria a chover pelo rosto, para contar a novidade ao seu namorado Prosperino,— homem disciplinado militarmente nos tempos da guerra—, que andava muito ocupado nas suas tarefas de “patriotismo partidário”. . . Tendo chegado a casa, D. Judith anunciou a novidade, e Prosperino ficou muito feliz com a “Boa Nova” que acabara de ouvir, pois o seu filho primogénito nasceria numa data especial— dia da celebração da Independência Nacional— e que para ele seria uma dupla comemoração.
Dona Judith, que tinha engravidado “acidentalmente” de Prosperino, primeiramente pensou em abortar, mas por ela estar nutrida de princípios religiosos, tal ideia não teve espaço, sobretudo depois que contou ao então namorado Prosperino sobre a provável data de nascimento do bebê. No entanto, nas semanas seguintes após o anúncio, Prosperino começou a criar condições para construir essa família provendo abrigo, alimentos, e cumprindo com o papel de “chefe da família”, e juntos com a D. Judith, faziam planos sobre o futuro:
— Quando ela nascer, vamos chama-la de Janete, nome da minha falecida mãe,— disse a D. Judith.
— Nome de falecidos da família não é para dar aos vivos. . . — comentou Prosperino,— Não sabes que o bebê pode carregar o azar da falecida? E quem disse que vai ser menina?
— Veja só, eu só tenho irmãs, e você também só tem irmãs. . . O mais provável é que nasça menina também. . .
— Será homem, — disse Prosperino num tom seco—, e vamos chamá-lo de Paiva, e tem que ser homem de verdade: forte como eu. E, futuramente, será um militar como eu, ou um agente da polícia —
— Tem que ser alfaiate como o avô,— comentou a D. Judith.
— Por quê você quer tanto ressuscitar os mortos? O meu Paiva? Ficar anos e anos sentado diante duma máquina de costura? Isso é para mulheres. . .
Enfim, as conversas entre o casal eram sobre a data de nascimento, a advinhação do sexo da criança, atribuição do nome, e a escolha de futura profissão do tão esperado bebê. Mas numa coisa Prosperino estava certo: o sexo do bebê. Mas sobre a data, o nome, e a futura profissão, coube aos divinos ou aos antepassados se encarregarem disso, de tal modo que, nessas conversas, o próprio Prosperino, militar condecorado, às vezes confundia o nome:
— Quando ele nascer vamos chamá-lo de Pavio, ou seja, Paiva. . .
Entretanto, aconteceu o imprevisto que a D. Judith nascera muito antes da data prevista de parto, muito antes do 25 de Junho, dia de comemoração da Independência Nacional. Uma surpresa que não agradou ao Prosperino; primeiro por ter nascido antes da data especial; segundo, por desconfiar que, fazendo as contas, tal filho não fosse dele; terceiro, ele começava então a acreditar na Judith, sobre a ideia da maior probabilidade de terem uma menina, e que aquele bebê tinha sido provavelmente de outro homem, e por causa disso, o bebê ficou quase um mês sem nome, até que após muita sensibilização, ele atribuiu-o, como uma sentença:
— Maugento, — disse Prosperino numa voz áspera. — Chama-se Maugento.
— Não era para ser Paiva? — Perguntou a D. Judith humildemente, enquanto segurava o bebê.
— O Paiva vai nascer no dia 25 de Junho. . . — Esse aí pode chamá-lo de Maugento, ou Janeto. . . Não querias dar nome da falecida avó? Está aí: Janeto.
Após isso, não se falou mais sobre nome, e era melhor assim, que deixar Prosperino ainda mais nervoso, porque a zanga de um militar, todos nós a conhecemos, é tão devastadora quanto um ciclone.
Maugento, calmo e tranquilo desde o primeiro segundo no mundo, quando nasceu, nem teve a necessidade de chorar como os outros bebês normais, mesmo depois de passar por todos os cuidados, de tal modo que o médico sentenciou, em surdina:
“— Este aqui não tem futuro!”
Tendo ou não tendo futuro, Maugento foi crescendo, crescendo. . . Lendo. . . Crescendo na solidão do quintal, onde construía extraordinários brinquedos com arames, paus e materiais diversos, e consertando pequenos objetos, o que despertava então a curiosidade dos poucos parentes ou vizinhos que os visitavam, e alguns comentavam, admirados:
— Esse aqui será engenheiro. . . Veja só isto que fez. . .
— Talvez um mecânico. . .
O menino Maugento, mais observador que falador, preferia essa solitude a agitação das ruas, porque era nesse estado que as suas ideias fluíam como rios abundantes. Na escola, como aluno dedicado, era muito admirado pelos colegas e professores pela sua inteligência multi-disciplinar, que tirava quase sempre as máximas notas nas avaliações, porém, nas já conhecidas redações ” O que queres ser quando cresceres” , ele surpreendia a todos, não pela negativa,— porque, como ficou sabido, ele era então o melhor redator —, surpreendia, sim, pelo conteúdo.
Sucedia que Maugento tinha o sonho de tornar-se Padre, de tal forma que expressava isso nessas redações, e muita gente estranhava o seu desejo até ao ponto do mesmo não entender a estranheza dessa gente na sua escolha. No entanto, num desses dias, um professor curioso o questionou: — Tens certeza que. . . — antes que o mesmo terminasse de o perguntar, ele respondeu: — Não tenho certeza de nada neste mundo! Quê certeza terei eu do meu futuro?
O professor calou-se, mais admirado que conformado com a escolha e resposta de Maugento.
Volvidos algum tempo, ainda na adolescência, Maugento foi eleito na sua escola para representar os alunos da escola e os meninos do bairro no Parlamento Infantil, lá na cidade, e para fazer face a esta missão, ele mergulhou-se com dedicação na leitura e na escrita, de tal modo que a sua rotina era casa, escola, bibliotecas, e, aos fins-de-semana, igreja. Sem tempo para brincadeiras fúteis, nem ocupações inúteis.
Maugento, então baptizado com senso de justiça, honestidade, amor ao próximo, integridade, responsabilidade e veracidade, tornou-se num símbolo de referência no Parlamento Infantil, na cidade, na escola e no bairro inteiro, pelos seus argumentos e análises requintadas, que a dado momento, ele já manifestava o interesse em seguir a carreira política:
— Quando eu crescer, quero ser Presidentee da República.
— Mas isso não é profissão. . . — reagiu um dos colegas de carteira.
— Não importa. . .
— Mas. . . num passado recente, disseste que querias ser Padre. . .
— Que passado recente? Tenho o direito de mudar de opinião quantas vezes forem necessárias. . .
A ideia de ser Presidente da República surgira da necessidade de distribuir as riquezas da nação equitativamente, implementando políticas e reformas em vários sectores, para garantir a saúde, educação, segurança, justiça, alimentos, e bem-estar social que, segundo Maugento, muita coisa estava errada.
— Estás muito à vontade com essa ideia. . . Seu pai é o dono do país? — Comentou um dos colegas. — Não vais conseguir ser Presidente da República, porque este cargo já tem donos muito antes de nós nascermos.
— Veremos isso!— Respondeu Maugento.
Tendo passado algum tempo, o Governo Central, através de um dos seus Programas para a promoção e desenvolvimento da Educação, lançou uma série de Bolsas de Estudo ao nível nacional, e Maugento era elegível a estas bolsas, de tal modo que propos-se a concorrer. Ele não podia perder esta oportunidade, que parecia até um milagre, um daqueles sonhos que ninguém acredita que está acontecendo. Porém, como um bom filho, quis colher antes os conselhos dos seus pais sobre que área devia seguir.
— Bem, — disse a mãe, D. Judith—, eu gostaria que fizesses o curso de Gestão Financeira e Administrativa. . .
— Certo, — interrompeu o pai, Prosperino—, Administração Militar e Finanças.
— Que curso é esse? — Perguntou a D. Judith, admirada.
— Ah? Nunca ouviu, não é?— Respondeu Prosperino, perguntando-a, enquanto Maugento observava os dois nessa discussão.
— Faça Engenharia. . . — comentou D. Judith.
— Tudo bem, pode ser, — Concordou Prosperino às pressas, mas, como sempre, acrescentou: Engenharia Militar. Nisso, estamos todos no mesmo barco, sim!
— Não, eu pulei. — Discordou a D. Judith.— Eu quis dizer Engenharia Civil, ou Eletrónica. . .
— Não há quase diferença. . .— comentou Prosperino, e acrescentou: Engenharia Electrónica Militar.
— Chii! Mas qual é o teu problema, senhor? Você só pensa em guerra, não é?
— Penso no “patriotismo engajado”, só isso. . .
— E um engenheiro civil é menos patriota que um militar?
Prosperino não respondeu, apenas piscou os olhos afirmativamente, e os dois ficaram se encarando, enquanto Maugento esperava pela conclusão do “debate” do casal.
— Qual é o consenso?— Perguntou Maugento, mas a resposta foi um longo silêncio, de tal modo que ele retirou-se da sala aonde estavam, e os dois, Prosperino e D. Judith, ficaram discutindo.
Volvidos algum tempo, para dissipar a discórdia dos pais, Maugento concorreu ao Curso de Meteorologia e foi apurado. Frequentou e concluiu o curso de meteorologia com honras e méritos, obtendo a graduação e, posteriormente, a pós-graduação”.
Como homem adulto e culto que era, Maugento queria encontrar uma parceira cuja inteligência estivesse, digamos, ao seu nível, mas o coração do imprevisível, desobedecendo à sua mente, numa dessas poucas aventuras, foi apaixonar-se de repente, como um relâmpago, por uma mulher tão bonita. . . tão bonita quanto tonta, brilhando nos acessórios, espalhando perfumes e cores. Quando Maugento a viu pela primeira vez, sua garganta chegou a disparar de paixão. Florinda Pestana, não era apenas uma flor em pessoa, como também um perfume inesquecível. Porém, enquanto Maugento investia no intelecto, ela investia no corpo, sustentando a vaidade; enquanto um falava de ideias, a outra só comentava sobre pessoas, enquanto um se preocupava em projectar sonhos, a outra só pensava nos prazeres do mundo, e no imediatismo. Todavia, o destino quis que Maugento e Florinda se casassem, e num desses dias, com uma viagem marcada para um passeio na praia, ela foi ao encontro de Maugento, que estava sentado na varanda, e o perguntou:
— Que horas vamos partir?
— Não vamos! — Respondeu Maugento, secamente.
— Por quê? Já fizemos reserva de. . .
— Há previsão de ocorrência de chuva e ventos fortes. — Maugento espreitou o céu pela varanda, como se quisesse certificar-se da sua própria informação meteorológica, mas o dia estava ensolarado. Voltou a olhar Florinda de cima para baixo, medindo talvez o peso da sua frágil inteligência e, com alguma tristeza brilhando nos seus olhos, concluiu, — Lá na faixa costeira.
Octaviano Joba
Leia os mais visualizados
- “Um dia quis ser rio para guardar a memória da terra” – A poesia de Cristina Siqueira (2.250)
- Sob Silêncio, o Reverso dos dias, o Eixo Ausente – A poesia de Vasco Cavalcante (2.025)
- “Vasos ficam lindos se ornados com flores” – A poesia paraense de Ana Meireles (1.927)
- “O melhor dos ventos, a melhor das palavras” – Elke Lubitz (1.870)
- “Pequeno inventário das coisas que te pertencem” – A poesia e a arte de Jeannette Priolli (1.656)
Autor
-
Octaviano Joba é o pseudônimo de Octávio João Baptista, natural da Cidade de Quelimane. É professor do Ensino Primário (Fundamental), poeta e prosador. Foi colaborador do projecto literário afro-brasileiro IdeiArte-Cultura; e membro da Academia Mundial de Cultura e Literatura. Foi colaborador de diversas revistas literárias electrónicas, e co-autor de antologias nacionais e internacionais. Foi seleccionado em 1º lugar no Primeiro Desafio Literário Internacional da Revista Inversos, com o seu poema "Seu Amor Morto", num universo de 84 inscritos. Participou no 2º Concurso "Novos Talentos de Literatura — José Endoença Martins" (2018-2019), organizado pela FURB— Universidade Regional de Blumenau (Brasil). Foi um dos dez finalistas do concurso de contos do Prêmio Literário Carlos Morgado (PLCM)— "Novas Vozes, Novas Estórias"—, 2ª edição (2024), num universo de 170 inscritos (Moçambique). É colaborador do projeto literário "Folhinha Poética" desde 2016, e autor do blog "Vice-Verso"— Octaviano Joba.