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O Mal que Nos fascina: Por que o conflito entre Bem e Mal nunca sai de cena

O bem contra o mal Imagem literária

O conflito entre o bem e o mal na literatura, no cinema e na televisão

Desde que começamos a viver e contar nossas histórias, o embate entre o bem e o mal tornou-se um eixo simbólico das mais diversas imaginações narrativas. Essa oposição, que atravessa mitos, epopeias, romances, fantasias e até as tramas populares da televisão, continua sendo uma das forças estruturantes da ficção, pelo seu valor dramático, e também porque espelha o dilema moral e espiritual que habita os corações.

“A verdadeira tragédia do homem é o conflito entre o bem que deseja e o mal que pratica.” — Santo Agostinho, Confissões

1. Um arquétipo antigo que se renova

Crônicas míticas, épicos e tragédias mostram padrões similares: forças que representam ordem/vida e forças que personificam transgressão/entropia. Do Egito ao Japão, do Hesíodo às sagas nórdicas, há sempre uma narrativa que explica o mundo a partir de uma luta primordial. Como observa Mircea Eliade, o mito organiza experiências coletivas em torno de tempos sagrados e confrontos fundadores.

A crítica arquetípica, com pensadores, como Northrop Frye, mostra que o motivo do “confronto cósmico” reaparece em registros tão diversos quanto epopeias antigas e romances modernos: um repertório simbólico que a literatura reclina, reinventa e está apegada.1

2. Milton e a personificação do conflito

Em Paradise Lost (1667), John Milton personifica a resistência entre ordem divina e rebeldia: Satanás, ao afirmar “Better to reign in Hell than serve in Heaven”, torna-se uma figura ambígua que encarna tanto a grandeza trágica quanto a corrupção moral.2

“Better to reign in Hell than serve in Heaven.” — John Milton, Paradise Lost

3. Dostoiévski e a batalha interna

Em *Crime e Castigo* e *Os Irmãos Karamázov*, Dostoiévski descreve a luta moral como um conflito da consciência: culpa, remorso, tentação e redenção partilham o mesmo espaço psíquico. A famosa leitura que resume isso, “Deus e o diabo lutam; o campo de batalha é o coração humano”, capta a ideia de que o duplo moral habita cada sujeito.3

4. Mitologia pessoal e coletiva: Jung, a sombra e a narrativa

Carl G. Jung oferece uma ponte entre mito e psicologia: a noção de shadow descreve conteúdos psíquicos reprimidos que a consciência tende a projetar no “outro”. Na ficção, o antagonista frequentemente funciona como essa projeção. O monstro ou o vilão encarna aquilo que a comunidade (ou o herói) não quer reconhecer em si.4

5. Fantasia e romance moderno: corrupção do poder e nuance moral

No século XX, o tema ganhou contornos políticos e éticos novos. Em O Senhor dos Anéis, Tolkien toma o mal como força de corrupção: o Anel representa a vontade de domínio que desfigura caráter e intenção. O triunfo da narrativa não reside na aniquilação do outro, mas na resistência humilde, no sacrifício e na recusa do poder absoluto.5

6. Formas narrativas do conflito

  • Épico e mito: conflito cósmico e fundacional (Milton; epopeias antigas).
  • Romance psicológico: luta interior, culpa e busca por redenção (Dostoiévski; realismo moral).
  • Fantasia / aventura: teste do poder, tentação, sacrifício (Tolkien e herdeiros).
  • Gótico e conto: personificações do mal que interrogam identidade e sociedade (Poe, Stevenson, Wilde).

7. No cinema

O cinema amplificou e deu mais cores à oposição em imagens e mitos visuais. Arquétipos como a luta do herói contra a sombra ganham força em obras de amplo apelo: de Star Wars (Luke vs. Vader — redenção e queda) ao confronto moral em Batman: O Cavaleiro das Trevas (ordem contra anarquia).6

8. Nas novelas

As novelas brasileiras funcionam como laboratório social do embate moral. Vilãs e heróis tornaram-se ícones culturais: Odete Roitman (*Vale Tudo*), Carminha (*Avenida Brasil*), Nazaré Tedesco (*Senhora do Destino*). A versão atual de *Vale Tudo* (2025), que acabou de acender a audiência nos lares brasileiros, com Taís Araújo e Bella Campos, manteve o núcleo clássico do conflito entre honestidade e ambição, destacando o impacto da corrupção, das escolhas individuais e das tensões sociais. A presença renovada de Odete Roitman reafirma o fascínio popular pelo mal carismático, um mal que se disfarça de poder e elegância.7

9. As zonas cinzentas

As séries dos streams e novelas modernas relativizam a dicotomia do bem e do mal. *Game of Thrones*, *Succession* e dramas contemporâneos mostram personagens transitando entre heroísmo e falha moral. O público se envolve com a complexidade, reconhecendo nuances e consequências éticas.8

10. Por que a persitência

O tema é duradouro porque organiza conflito e resolução, explora responsabilidade moral, funciona como espelho simbólico e tem flexibilidade estética. Harold Bloom observa que a literatura tenta reconciliar a alma dividida, e o embate entre bem e mal é a gramática dessa tentativa.9


Notas de rodapé

  1. Northrop Frye, Anatomy of Criticism, 1957
  2. John Milton, Paradise Lost, 1667
  3. Dostoiévski, Crime e Castigo / Os Irmãos Karamázov
  4. Carl G. Jung, Aion, 1951
  5. J.R.R. Tolkien, The Lord of the Rings, 1954
  6. Star Wars / Batman: The Dark Knight
  7. Vale Tudo (2025) – Gshow
  8. Game of Thrones, Succession – exemplos de narrativa contemporânea
  9. Harold Bloom, The Western Canon, 1994

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