O nojo do Brasil

por Manoel Herzog

Milton Nascimento e Lô Borges
Milton Nascimento e Lô Borges

Quando eu costumava ser um operário na indústria, e depois, na advocacia trabalhista, sempre me absurdou a expressão “licença-nojo”, aquele direito que o trabalhador tem, uns dias de liberdade do cativeiro liberal por conta do falecimento de um ente querido. Quando casa, tem direito a uma tal “licença-gala”, termo que não deixa de ser interessante. As raízes ancestrais do termo “nojo”, agregado ao conceito de luto e tão distante do sentido original, de repulsa, vêm do latim, pai do português arcaico e avô do moderno. O termo latino “nauseam”, que derivou para nojo, significa pesar da alma, dor profunda moral, sensação insuportável. No arcaico equivalia à dor pela perda, no moderno ficou mais restrito à aversão por algo repugnante. Jean Paul Sartre deu à sua maior obra o título “A Náusea”, falando do sentimento vigente na humanidade no século que consolidou o liberalismo econômico ao lado do conservadorismo moral. Faço este preâmbulo para dizer que estou absolutamente enojado da morte de Lô Borges. Eu e toda uma geração não superamos um luto recente, seguimos a sofrer, a inconformar, a não aceitar, por mais que os good vibes insistam em desejar ao espírito do finado uma senda de luz na eternidade etc.

A morte do Lô, junto à lenta e dolorosa agonia do Milton, representam a morte do Clube da Esquina, e a morte do Clube da Esquina nos enoja a todos, porque metaforiza a morte da música brasileira, talvez, neste país de tão retumbantes fracassos, nossa maior conquista civilizatória. Nossa economia é suja, formada sobre um leito de opressão e exploração, nosso direito é canalha, nossa política é podre, mas tínhamos a música, que hoje estertora em praça pública sob um mar de soja transgênica.

Com sua lucidez habitual, Zeca Baleiro, levado a BH por razões lutuosas distintas, aproveitou e foi prestar sua homenagem no velório do Lô. Proferiu uma sentença triste, mas verdadeira: não surgirão mais compositores feito o Lô, ele pertence a uma era perdida. Talvez que o próprio Zeca seja o último titã (não a bandinha), não duvido, e não que nos faltem talentos, estes abundam, os talentos é que não têm mais vez.

Bradam contra a Lei Rouanet os direitistas (seja lá o que for isso), mas os maiores mamadores de verba pública para apresentação de espetáculos musicais tétricos são uma lista que vai de Bruno and Mahoney até Gustavo Lima, passando por Zezé e afins. No dia que Lô Borges morreu eu me sentei num banco de shopping, aqui em Santos, e pus-me a ouvir a conversa de um senhor (devia ser dono da loja em frente) pra duas funcionárias, elencando suas preferências musicais. Ouvi de passagem os nomes do mesmo Lima, de Marília Mendonça, de Chitãozinho. Cheguei a desejar-lhe as piores coisas, mas não quero julgar aquele senhor, ele tem até uma loja, é um vencedor, não quero julgar as vendedoras que ouvem esse monte de merda, foi o que se lhes deu a ouvir. Eu mesmo cresci ouvindo bossa nova e Silvio Caldas, contrariado, odiava, meu avô me obrigava a ouvir por osmose, não desligava a vitrola. Formei-me assim, sou este ranzinza. Aguardemos a ver no que resultará a formação cultural dessa geração que ouve agronejo. Não estarei pra ver, com a graça de Deus, em cujos braços pretendo estar quando se der a Revelação.

O Clube da Esquina, paradoxalmente ao fato de ser o maior movimento contemporâneo da música nacional, foi justo o turn-point que sepultou o samba e abriu caminho ao nefasto rock nacional e ao sertanejo, tudo sob o elegante nome “folk”. Lô, o beatle-barroco, congrega a tradição brasileira das Geraes e aponta pra um futuro cosmopolita. O processo civilizatório desses mais de 500 anos de nação segue um fluxo natural, do litoral ao interior profundo. Nossa literatura nasce carioca e portuária, vai numa trilha (a Estrada Real?) de Machado de Assis país adentro até encontrar Rosa. Da mesma forma a música, que atinge, depois de Villa Lobos e Pixinguinha, um ápice com Antonio Carlos Jobim e que, através do grande Maestro carioca, ruma Brasil adentro pra encontrar o Clube. Nós perdemos o trem azul da história, contudo.

Penso que o encontro da wave universal com o Brasil profundo merecia digestão mais lenta, feito a da velha sucuri dos confins selváticos. O atropelamento, a violência do processo, que começa tão lindo (vide Rosa, vide Clube da Esquina) devia se consolidar melhor, maturar, é da natureza da cultura cultivar, dar um tempo, curtir. Não, avançaram feito uns desgraçados pro interior profundo, sem formar uma tradição, o que resultou, em literatura, na infantilidade da poesia contemporânea herdeira de Manoel de Barros (que venham as pedras), e, na música, no rock nacional do cerrado e no sertanejo de soja que empesteia os palcos das prefeituras brasileiras. (que venham mais pedras).

O Brasil está enojado da morte do Clube da Esquina, é insuportável. Sem ter merecido a reverência devida, atropelado pelo processo econômico tão eficiente em produzir arte de má qualidade. Não conseguiremos nos conformar tão cedo, que Deus conforte o nosso coração.

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