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Para aprender a amar “Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus”

Quarto de Despejo — Carolina Maria de Jesus

Testemunho em diário da fome, da luta e da sobrevivência na favela do Canindé.

Carolina Maria de Jesus — Quarto de Despejo

Quarto de Despejo: Diário de uma moradora da favela. É um relato autobiográfico de Carolina Maria de Jesus, escrito entre 1955 e 1960, em forma de diário. A obra retrata com crueza a vida na favela do Canindé, em São Paulo, marcada pela fome, miséria e exclusão social. Publicado em 1960, tornou-se um marco da literatura marginal, de resistência, superação e da denúncia social no Brasil.

13 de Maio. Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpatico para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. …Nas prisões os negros eram os bodes expiatorios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com desprezo. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz. Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair. …Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles vê as coisas de comer eles brada: – Viva a mamãe! A manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o hábito de sorrir. Dez minutos depois eles querem mais comida. Eu mandei o João pedir um pouquinho de gordura a Dona Ida. Ela não tinha. Mandei-lhe um bilhete assim: – “Dona Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura, para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje choveu e eu não pude catar papel. Agradeço, Carolina”. …Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A Vera começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetaculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos. E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!

15 de maio. Tem noite que eles improvisam uma batucada e não deixa ninguém dormir. Os visinhos de alvenaria já tentaram com abaixo assinado retirar os favelados. Mas não conseguiram. Os visinhos das casas de tijolos diz – Os políticos protegem os favelados. Quem nos protege é o povo e os Vicentinos. Os políticos só aparecem aqui nas epocas eleitoraes. O senhor Cantidio Sampaio quando era vereador em 1953 passava os domingos aqui na favela. Ele era tão agradavel. Tomava nosso café, bebia nas nossas xicaras. Ele nos dirigia as suas frases de viludo. Brincava com nossas crianças. Deixou boas impressões por aqui e quando candidatou-se a deputado venceu. Mas na Câmara dos Deputados não criou um progeto para beneficiar o favelado. Não nos visitou mais. …Eu classifico São Paulo assim: O Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos. …A noite está tepida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido. Começo ouvir uns brados. Saio para a rua. É o Ramiro que quer dar no senhor Binidito. Mal entendido. Caiu uma ripa num fio da luz da casa do Ramiro. Por isso o Ramiro queria bater no senhor Binidito. Porque o Ramiro é forte e o senhor Binidito é fraco. O Ramiro ficou zangado porque eu fui a favor do senhor Binidito. Tentei consertar os fios. Enquanto eu tentava concertar o fio o Ramiro queria espancar o Binidito que estava alcoolisado e não podia para em pé. Estava inconciente. Eu não posso descrever o efeito do alcool porque não bebo. Já bebi uma vez, em caráter experimental, mas o alcool não me tonteia. Enquanto eu pretendia concertar a luz o Ramiro dizia: – Liga a luz, liga a luz sinão eu te quebro a cara. O fio não dava para ligar a luz. Precisava emendá-lo. Sou leiga na eletricidade. Mandei chamar o senhor Alfredo, que é o atual encarregado da luz. Ele estava nervoso. Olhava o senhor Binidito com despreso. A Juana que é esposa do Binidito deu cinquenta cruzeiros para o senhor Alfredo. Ele pegou o dinheiro. Não sorriu. Mas ficou alegre. Percebi pela sua fisionomia. Enfim o dinheiro dissipou o nervosismo.

16 de maio. Eu amanheci nervosa. Porque eu queria ficar em casa, mas eu não tinha nada para comer. …Eu não ia comer porque o pão era pouco. Será que é só eu que levo esta vida? O que posso esperar do futuro? Um leito em Campos do Jordão. Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos.

17 de maio. Levantei nervosa. Com vontade de morrer. Já que os pobres estão mal colocados, para que viver? Será que os pobres de outro País sofrem igual aos pobres do Brasil? Eu estava discontente que até cheguei a brigar com meu filho José Carlos sem motivo. …Chegou um caminhão aqui na favela. O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada. Penso: é assim que fazem esses comerciantes insaciaveis. Ficam esperando os preços subir na ganancia de ganhar mais. E quando apodrece jogam fora para os corvos e os infelizes favelados. Não houve briga. Eu até estou achando isto aqui monotono. Vejo as crianças abrir as latas de linguiça e exclamar satisfeitas: – Hum! Tá gostosa! A dona Alice deu-me uma para experimentar. Mas a lata está estufada. Já está podre.

— Carolina Maria de Jesus

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Trechos extraídos de Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, Carolina Maria de Jesus (escrita entre 1955–1960; publicada originalmente em 1960).
Uso nesta página com fins educacionais e de divulgação cultural. Direitos autorais reservados à família da autora e à editora responsável.

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