Poema Sujo de Ferreira Gullar: Memória e Exílio
O próprio Ferreira Gullar nos conta: Escrevi Poema Sujo em 1975, em Buenos Aires, depois de anos de exílio em Moscou, Santiago e Lima. A primeira fase do exílio foi atordoante; a última — a queda de Allende e o reencontro traumático com a família no Peru — foi devastadora. Mudei-me para Buenos Aires em 1974, cidade mais próxima do Brasil e inicialmente acolhedora, mas logo atingida pela repressão às esquerdas. Amigos foram presos ou fugiram. Com o passaporte vencido, eu não podia sair, salvo para Paraguai ou Bolívia, também sob ditaduras. Cada manhã trazia novos cadáveres perto de Ezeiza. Sabia-se que agentes brasileiros atuavam livremente na captura de exilados. Eu me sentia cercado. Decidi escrever um poema que fosse meu testemunho final.
Antes, tentara transformar os anos de São Luís num romance, sem sucesso. Achava que aquele material não cabia num poema. Mas a urgência do momento mudou tudo: não queria discursar sobre o passado, e sim torná-lo presente, matéria viva. Pensei num procedimento próximo ao de O Formigueiro (1955): lançar em escrita quase automática a massa da experiência vivida e, desse magma, construir o poema que encerraria minha aventura pessoal e literária.
À noite, imaginei o método; de manhã, diante da máquina, o “vômito” não veio. Busquei então outro caminho. “O poema deve começar antes de mim”, pensei. O alívio veio com os primeiros versos:
tudo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
A partir daí, o poema ganhou corpo. Escrevi cinco páginas, exausto e iluminado. De maio a agosto, vivi para o poema, sozinho e sem emprego. Andava pelas ruas próximas da Honório Pueyrredón, deixando que a enxurrada de lembranças e sensações se convertesse em palavras, e voltava a casa para registrar as novas estrofes.
Em agosto, o fluxo cessou de repente. A atmosfera que me movia se dissipou: o poema se dera por concluído, embora faltasse um fecho. Tentei prolongá-lo, mas descartei o material escrito depois. Afastei-me por quase dois meses, até que um dia comecei a murmurar:
O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
Releio essa parte final com surpresa: era exatamente o encerramento que o poema exigia. Com o poema concluído, eu sabia ter vivido uma experiência única: liberdade interior extrema, capaz de tornar atuais todas as palavras, cheiros, sons e vozes da infância, da família, dos amores e dos poetas.
Mostrei apenas o início à Thereza. Depois, li o poema na casa de Augusto Boal, a pedido de Vinicius de Moraes. Comovido, Vinicius quis uma cópia; gravamos numa fita. No Rio, ele reuniu amigos para ouvir. As cópias se multiplicaram, até que o editor Ênio Silveira me pediu o texto para publicação. Meses depois, Poema Sujo estava nas livrarias. Escritores e amigos mobilizaram-se para garantir meu retorno seguro ao Brasil — iniciativa de que só soube depois. A resposta do governo foi negativa, mas eu estava exausto do exílio, com dois filhos doentes e uma saudade insuportável. Voltei. Fui levado ao DOI-Codi, interrogado por 72 horas, ameaçado. No fim, disseram: “É para você não pensar que podia voltar assim, de graça”.
Ainda assim, devo ao Poema Sujo o fim antecipado do meu exílio.
— Ferreira Gullar
Leia na íntegra o Poema sujo, ou faça o download grátis.
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