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“Uma poética em mutação permanente” – Claudio Daniel analisa a poesia de Abreu Praxe

Claudio Daniel

Abreu Paxe nasceu na província de Uíge, no norte de Angola, em 1969. Assim como seus companheiros de geração, vivenciou o período final da luta anticolonialista, seguida pela guerra civil e o esforço de reconstrução nacional. Em sua juventude, leu poetas como Agostinho Neto, João Maimona, Davi Mestre, Arlindo Barbeitos e Ruy Duarte de Carvalho. Esta é a sua formação literária básica, à qual se somou, depois, a leitura de poetas portugueses e brasileiros contemporâneos.

Abreu Paxe

Sua carreira literária começou em 1994, com a publicação de quatro poemas na página cultural do Jornal de Angola. Posteriormente, já em 2003, publicou o livro A chave no repouso da porta, cuja linguagem não se parece com nenhuma outra; tem uma dicção própria, originalíssima, que nos encanta pelo seu método de composição e capacidade imaginativa.

O artesanato consistente com as palavras segue por uma linha distinta do discurso lírico consolidado; o autor busca outras veredas, outras possibilidades de construção poética, atento à estrutura e à semântica, ou seja, à materialidade verbal, não raro rompendo com a sintaxe, seja pelo uso da parataxe, seja pela supressão da pontuação e pelo esvaziamento do sentido das palavras, que funcionam mais como células sonoras e cromos imagéticos do que como simples portadores de mensagens referenciais.

Capa do livro A chave no repouso da porta

O caráter mutante — ou aliás mutável — de sua poesia está em conexão com a própria personalidade do autor, que se descreve como “um ser confuso, incompleto, sempre pronto a ser forjado, formado e transformado”, conforme declarou em entrevista para a revista Zunái.

Se, por um lado, identificamos em sua poesia um exercício poético consciente, uma operação racional, à maneira de João Cabral de Melo Neto, inclusive pela ênfase nos substantivos e na visão do poema como um objeto de linguagem, por outro lado temos uma deliberada imprecisão de sentido, à maneira de Herberto Helder; a construção é precisa, mas o sentido é impreciso e altamente sugestivo, quase hipnótico, fazendo-nos recordar da frase de Mallarmé sobre «o poder encantatório das palavras».

Essas duas considerações, a princípio, parecem opostas: como conciliar o racionalismo da forma com a aparente alucinação de imagens e sonoridades, voltadas à nossa fruição sensorial? O aparente paradoxo encontra sua síntese na própria poesia, que em seus momentos de invenção e epifania é capaz de conciliar o Eros e o Logos, a sedução da forma e a forma da sedução.

Na poesia simbolista vamos encontrar numerosos exemplos de criação rigorosa de linguagem conciliada com uma enorme riqueza de imaginário, e ainda em autores latino-americanos do século XX como Lezama Lima, Oliverio Girondo ou César Vallejo, para ficarmos em poucos exemplos. Quando a linguagem é levada a extremos, rompendo com o previsível e rotineiro, ela cria outra lógica, outra sintaxe, outro código, como se intentasse a criação de um universo autônomo, «com sua própria fauna e flora», no dizer de outro latino-americano, o chileno Huidobro.

Conforme diz o próprio Abreu Paxe em sua entrevista para a Zunái: “A poesia está sempre no limite das coisas. No limite do que pode ser dito, do que pode ser escrito, do que pode ser feito, do que pode ser visto e até pensado, sentido e compreendido. Estar no limite, ainda dizia, significa muitas vezes, para o [poeta/leitor], estar para lá do que estamos preparados para aceitar como possível”.

“Penso que a poesia, como ato de criação, para mim não deve de forma objetiva nomear as coisas tal qual como elas acontecem no cosmos, tal como se movem, tal como o cosmos as regula, vistas, à vista desarmada ou macroscopicamente. A poesia deve constituir-se no mundo alternativo, este funcionando como mundo não codificado ou convencionado numa visão globalizante, senão como codificação singular do criador e do leitor. Ao serviço da arte, a poesia deve-se construir com certa erudição, ou seja, a partir do que já existe, do que já foi proposto nos matizes artísticos. A poesia deve convidar-nos a mergulhar no escuro, como dizia Gastão Cruz, não para o iluminar, mas para aprender a conhecê-lo, evocando todos os sentidos. Como se pode ver, para mim a linguagem poética é a criação de uma outra realidade, fundada numa realidade, ou seja, a recriação da realidade observável.”

Nos momentos de maior intensidade lírica do livro, o texto poético se funde à música e à pintura, ele cria significados, cria realidades, em vez de apenas retratar passivamente o mundo das coisas. A linguagem deixa de ser apenas representação nominal, reflexo especular de objetos externos, para ser, ela mesma, o seu sentido — numa estranha matemática de vertigens.

Ao mesmo tempo, porém, o poeta volta o seu olhar para as pequenas coisas, que passam quase despercebidas por nosso olhar na vida cotidiana, como acontece com a própria chave no repouso da porta.

Conforme afirma o poeta: “Persigo, neste exercício, a capacidade de recomposição e síntese, transformando meu olhar em unidades de análise, uma qualidade que impregna todas as criações resultantes de um processo interativo entre o homem e os meios eletrônicos em que a metamorfose e o virtual se projetam na mente humana como agentes da própria instabilidade e plasticidade, como agentes da invenção e da percepção, levando a poesia para além dos limites, numa viagem expansiva para o lugar inabitado, originando imagens simultâneas e diversas capazes de modificar os sentidos (ordenados) num elevado grau de fragmentação. Estes fragmentos, estes paradoxos, que vez ou outra nomeio, buscam anular a linearidade, a luminosidade, o detalhe. Mesmo quando experimento as vestimentas narrativas, sinto que só participo alegremente de uma festa que legitima os estímulos que nos cercam, nas atualizações materiais onde é preciso abrir os olhos e a mente de um modo diferente”.

Agora, se me perguntarem o que é exatamente A Chave no Repouso da Porta, eu responderia que é um conjunto singular de 42 peças que dissolvem as fronteiras entre prosa e poesia (recordando o conceito de texto de Max Bense), abdicando também de uma sintaxe puramente gramatical, que cede vez a uma sintaxe musical e analógica, em que as palavras são aglutinadas conforme a intenção melódica e rítmica do poeta, desprezando a ocorrência regular de maiúsculas ou pontuação.

As palavras e linhas são tratadas como acordes numa peça de concerto, ou como manchas coloridas numa tela, obedecendo a um princípio construtivo exigido pela própria obra, e não por normas exteriores a ela. Há uma ênfase nos substantivos (novamente, a materialidade), que constroem imagens concisas, fragmentárias, quase cubistas; há uma velocidade na sucessão de quadros ou cenas que faz lembrar um videoclipe, como por exemplo no poema dimensões ossificadas chaves (que já no título apresenta a bizarria da junção de três termos sem nexo aparente entre si):

a chave treme no repouso da porta a janela ronda
pequeno porto tudo dispersa apesar da ruga inglesa
as persianas estradas paredadas em negrito partes
sufocadas voltam em gestos
confusos sem lâmpadas dormia a criança
na inscrição falava umberto saba vivo a um povo
de mortos possesso certamente
mal conhecido destroço no sul da ilha.

Esse fluxo verbal, que nada tem de linear ou previsível, pode ser considerado uma antinarrativa, feita de junções de personagens e cenários num caos ordenado, um pouco à maneira do princípio do ideograma, definido por Ezra Pound como «justaposição de imagens» (derivado de seu estudo da poesia chinesa e japonesa, via os apontamentos lacunares de Fenollosa).

Em outras peças, temos uma fúria semântica próxima ao expressionismo, com sua ênfase em secreções, partes do corpo e na desagregação («as veias sêmen debruçadas minúscula incandescência», «afogava barcos sua mortal cloaca unia velha íris» etc.). O grau de estranhamento é ampliado, para os leitores que não são de origem angolana, pelo uso de palavras no idioma quimbundo, referências geográficas e mesmo provérbios populares, que nos remetem a um outro universo referencial.

Haveria muito mais o que dizer da poesia de Abreu Paxe, mas, para concluir este breve texto, gostaria apenas de apontar suas afinidades com a poesia da América Latina, em especial com o chamado Neobarroco, que opera experiências similares com a linguagem, promovendo a mescla entre prosa e poesia (como no Mar Paraguayo, do brasileiro Wilson Bueno), a criação de uma sintaxe mais analógica do que gramatical e a fusão de diferentes repertórios culturais e linguísticos, numa deliberada mescla de signos que sintetiza a multiplicidade e o movimento dinâmico não apenas da poesia, mas da vida.

São Paulo, outubro de 2025

Conheça dois poemas de Abreu Paxe:

Ler os poemas

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SOBRE O AUTOR Claudio Daniel, pseudônimo de Claudio Alexandre de Barros Teixeira, é poeta, tradutor e ensaísta. Nasceu em 1962, na cidade de São Paulo (SP), onde se formou em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Cursou o mestrado e o doutorado em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu a tese A recepção da poesia japonesa em Portugal. Realizou o pós-doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), durante o qual realizou pesquisa sobre o tema Caligrafia e visualidade na poesia experimental portuguesa. Foi diretor adjunto da Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, em 2007, curador de Literatura no Centro Cultural São Paulo entre os anos de 2010 e 2014 e colunista da revista CULT. Editou, ao longo de vinte anos, a Zunái, revista de poesia & debates. Atualmente, é editor da revista impressa Grou Cultura e Arte, do Banquete, jornal de resenhas e crítica literária e, ao lado de Antônio Vicente Seraphim Pietroforte do programa Poesia na veia, transmitido no YouTube. Sua obra poética foi traduzida parcialmente para o inglês, espanhol, italiano, catalão e japonês. Em 2001, recebeu o prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, oferecido pela revista CULT. Em 2007, foi selecionado para o Programa Rumos Literatura, promovido pelo Itaú Cultural, e em 2009 recebeu a bolsa de criação literária oferecida pela Funarte. Organizou os eventos literários internacionais Galáxia Barroca e Kantoluanda na Casa das Rosas, em 2006, na cidade de São Paulo, e foi um dos curadores do festival Tordesilhas, Festival Ibero-Americano de Poesia Contemporânea, realizado em 2007, na Caixa Cultural, e do Tordesilhas, Poetas de Língua Portuguesa, realizado em 2010, na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. Em 2011, foi convidado para o III Festival Internacional de Poesia em Santo Domingo, República Dominicana. Em 2021, participou dos eventos online Festival Zoopoético, Nkodya DyaMpangu – Encontros de Arte e Pensamento – e Templo d’Escritas – I Festa Literária Internacional da Língua Portuguesa. Participou de diversas antologias, nacionais e internacionais, como Pindorama, 30 poetas de Brasil, organizada e traduzida por Reynaldo Jiménez (Buenos Aires: Tsé Tsé, 1998), New brazilian & american poetry, com seleção e tradução de Flavia Rocha e Edwin Torres (New York: Rattapallax n. 9, 2003), Cetrería, once poetas brasileños, preparada por Reina María Rodríguez (Havana: Casa de Letras, 2003), Antologia comentada da poesia brasileira do século 21, organizada por Manuel da Costa Pinto (São Paulo: Publifolha, 2006), Alguna poesía brasileña, com seleção e apresentação de Rodolfo Mata e Regina Crespo (Cidade do México: editora da Universidad Nacional Autónoma de México, 2009), Roteiro da poesia brasileira: anos 90, preparada por Paulo Ferraz (São Paulo: Global, 2011), entre outras. Atualmente, Claudio Daniel é editor da revista eletrônica de poesia e debates Zunái, do blog Cantar a Pele de Lontra (http://cantarapeledelontra.blogspot.com) e ministra aulas online de criação literária no Laboratório de Criação Poética, curso realizado à distância, via internet. Livros publicados: Poesia: Sutra (edição do autor, 1992) Yumê (Ciência do Acidente, 1999) A sombra do leopardo (Azougue, 2001) Figuras metálicas (Perspectiva, 2005) Fera bifronte (Lumme Editor, 2008) Letra negra (Arqueria, 2010) Cores para cegos (Lumme Editor, 2012) Cadernos bestiais, volume I (Lumme Editor, 2015) Esqueletos do nunca (Lumme Editor, 2015) Cadernos bestiais, volume II (Lumme Editor, 2016) Cadernos bestiais, volume III (Lumme Editor, 2016) Fuyú, poemas de inverno (1ª. Edição, Espectro editorial, 2017; 2ª. Edição, Córrego, 2020) Cadernos do rio vermelho (Edições Galileu, 2020) Marabô Obatalá (Kotter Editor, 2020) Fiori occipitale è il nome dela testa (Lumme Editor, 2020, edição bilíngue, com traduções para o italiano por Alessandro Mistrorigo) E-book: Marabô Obatalá (Leonella Editorial, 2017, http://amzn.to/2GEy3Yp) Em Portugal: Escrito em osso (Cosmorama, 2008) Antologia da poesia brasileira do início do terceiro milênio (07 Dias, 06 Noites, 2008) Marabô Obatalá (edição portuguesa, Kotter Editor, 2020) No México: Yumê. Tradução: Victor Sosa (Calygramma, 2014) Ficção: Romanceiro de dona Virgo (contos, Lamparina, 2004) Mojubá (romance, no prelo) Tradução: Geometria da água e outros poemas, de José Kozer (Fundação Memorial da América Latina, 2000, em colaboração com Luiz Roberto Guedes) Estação da fábula, de Eduardo Milan (Fundação Memorial da América Latina, 2002). Madame Chu e outros poemas, de José Kozer (Travessa dos Editores, 2003, em colaboração com Luiz Roberto Guedes) Prosa do que está na esfera, de Leon Felix Batista (Olavobrás, 2003, em parceria com Fabiano Calixto). Jardim de camaleões. A poesia neobarroca na América Latina (Iluminuras, 2004). Sunyata e outros poemas, de Victor Sosa (Lumme Editor, 2006). Shakti, de Reynaldo Jiménez (Lumme Editor, 2006). Íbis amarelo sobre fundo negro, de José Kozer (Travessa dos Editores, 2006, em colaboração com Luiz Roberto Guedes e Virna Teixeira). Antologias: Na virada do século, poesia de invenção no Brasil (Landy, 2002, em colaboração com Frederico Barbosa). Perfectos extraños. seis poetas de Brasil. Antologia de poetas brasileiros contemporâneos, em versão bilíngüe, com traduções ao espanhol por Eduardo Milan (revista El Poeta y su Trabajo n. 15, Primavera / 2004, México). O arco-íris de Oxumaré. Antologia de poetas brasileiros contemporâneos, em versão bilíngüe, com traduções ao espanhol por Reynaldo Jiménez, Manuel Ulacia e outros (revista Homúnculus n. 3, Verão / 2004, Peru). Todo comienzo es involuntario. Ocho poetas jóvenes brasileños. Antologia bilíngüe com traduções de Leo Lobos (revista El Navegante n. 2, Verão, 2007, Chile). Ovi-Sungo, Treze Poetas de Angola (Lumme Editor, 2007). El ornitorrinco naranja (Lumme Editor, 2014) Na internet: Zunái, Revista de Poesia e Debates: www.revistazunai.com.br (“primeira dentição”); www.zunai.com.br (“segunda dentição”) Claudio Daniel Home Page: www.revistazunai.com.br/zunai Cantar a Pele de Lontra (blog), http://cantarapeledelontra.blogspot.com

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