“Anjo” um conto do escritor Edyr Augusto Proença

ANJO

Edyr Augusto Proença

Eu era moleque e passava todos os dias, pela 3 de Maio, na baixada da Matinha, subindo para as aulas no Vilhena Alves. Ela ficava sentada, esparramada em uma cadeira velha, na calçada, em frente à casa, dona do lugar. Uma imperatriz ciente de seu poder. Os cabelos revoltos, tinham sempre uma ajudante a pentear. O pente deslizava longamente e ela às vezes fechava os olhos, deliciada. Aparecia alguém, ela encarava, ouvia, a ajudante ia lá dentro, voltava, entregava, recebia alguma coisa e retornava à delícia do pente. Delzuite, a rainha da Matinha. Perguntei para a mãe que desconversou. Não te mete por lá ou levas uma surra. Aumentou a curiosidade. Uma vez, Delzuite não estava na porta. Dentro da casa, escura, havia um pequeno caixão. Sei lá. Um ano depois, talvez, outro caixão. A mãe disse que era da fazedora de anjos. Como assim? Passa o tempo. Já tinha 15 anos e saía pela noite, com amigos. Claro que fumávamos maconha, vendida pela Delzuite. Agora eu sabia as restrições da mãe. Não tínhamos dinheiro, fazíamos uma coleta e o fumo passava por todos. Só uma animação, mistério, coisa de rapazes. Uma noite, vinha sozinho. Foi então que a vi. Pele negra, cabelos lisos, até a cintura, encostada na mureta do canal. Fumava e soltava a fumaça em longos sopros. Era Yemanjá, filha de Delzuite, figura lendária na Matinha. Passava as noites por ali, fumando. Os colegas falavam dela como algo inalcançável. O mistério era maior porque ela era a tal “fazedora de anjos”. Engravidava e perdia, todos os anos. Por isso a sua tristeza, melancolia, noite adentro. Fui passando perto, como quem não quer nada, querendo. Ela chamou. Ei, branco. Vem cá. Eu? Hum, pensas que eu já não te vi te abicorando e me olhando? Desculpe, Dona Yemanjá. Que dona, que nada. Para com isso. Tédoidé? Queres me fazer velha? Conversamos a noite inteira. Nunca toquei no assunto dos anjos. Me apaixonei de primeira. Desejo. Sonhava com ela. Vinha andando e ela surgia, nua, negra, os cabelos em brasa e quando tentava ir, aparecia um homem branco, todo de branco e me dizia não vai. Perigo. Acordava excitado, assustado. E passava à noite. Estávamos lá, fumando e chega um homem. Quem é esse? Ela disse que eu era o branco dela. Só pra conversar. Ela fez um sinal, deu um tchau rápido e foi com ele. Fiquei naquela mureta de canal arrasado. Ainda era um moleque. Foi isso o que ela me mostrou. Mas na noite seguinte, voltei. Os colegas faziam graça, invejosos. E eu fazia com que pensassem que me dava bem. Havia até um respeito. Eles tinham namoradas e até nem eram mais virgens. Eu tinha a minha. Yemanjá. Meus sonhos preferidos eram com ela. Não me disse nada sobre o que aconteceu. A barriga começou a crescer. Entendi. Me afastei. Fiquei pelos cantos. Calado. Agredido. Evitava passar por lá. Disse que havíamos brigado. Estudava para as provas. A mãe comentou achando graça. A fazedora de anjos entregou mais um. Saí correndo. Lá estava o caixão. Não tive coragem de entrar. Vigiei e ela não aparecia na mureta. Apareceu. Fui chegando. Meu branco sumiu?

É. Estava estudando. Eu sei, eu sei. Estás com quantos anos? Dezesseis em dois meses. Não deu certo? Não. Mais uma vez. Aspirou fundo e soltou a fumaça. Parece uma pssica. Na noite seguinte, cheguei cheio de idéia. Yemanjá, balbuciei, a gente podia casar. Te tirar daqui. Tenho o estágio e logo faço vestibular, tenho emprego. A gente morava no meu quarto, lá com minha mãe. Ela riu amarelo. Casar? Eu e tu, meu branco? Só me faltava mais essa. Eu sonho contigo todas as noites. Muita gente sonha. O meu sonho, ninguém realiza. Quem sabe, comigo? Tu és ainda um moleque, meu branco. Se bem, que.. Me olhou de cima a baixo. Tu já estás bem grandinho. Bonitão. Mas deixa pra lá, meu branco. Vai atrás dessas periquitinhas que vivem olhando pra ti. Vamos ficar amigos, como sempre. Engoli. Mas voltei e voltei e voltei. Me aproximei. Ela deixou. Beijei seu pescoço. Seu cangote. Senti aquele cheiro almíscar fortíssimo. Ela amoleceu. Meu branco. Tu sabes onde estás te metendo? Sei. Eu quero. Vem cá. Me levou pela mão até a casa, de madeira, toda torta. Pediu silêncio. Delzuite dormia. Um quartinho. Cheiro de mofo. Suor. Atulhado de roupas. Cama desarrumada. Sentei. Ela tirou a roupa e eu perdi a virgindade. Aquela pele negra, os cabelos, o cheiro do sexo. Mergulhei naquela mulher Amazônia sem passagem de volta. Ela me ensinou, orientou. Suas pernas longas fechavam meu corpo, apertavam como uma boiuna. Sua boca sugava a minha, e seus olhos desvendavam meus pensamentos. Agora, todas as noites, assim. A mãe cobrou. O pai preocupou. As notas caíram. Ela me esperava na mureta. Uma noite Delzuite apareceu. Quem é esse pivete? Meu branco, mãe, não se meta. Me olhou e atravessou minha alma, como quem vê passado, presente e futuro. Deu de ombros e foi. Tu ainda queres casar? To grávida. Eu sentia orgulho de macho, medo do futuro. Meus pais não sabiam. E eu não parei de estar com ela. Estava no cursinho pré vestibular e vieram me chamar. Ouvia de longe os gritos. Chegou a ambulância. Quem é o pai. Me olhavam assustados. Ela era um mulherão, adulta. Eu era um adolescente metido a adulto. Esperei até que veio a notícia. Um menino. Mas a mãe não suportou. Fez um silêncio estrondoso no meu peito. O amadurecimento de uma vez. O menino ficou com meus pais. Eu no velório. Escuro. O cheiro. As orações, diferentes. Clientes indo e vindo. Quando voltei do enterro, Delzuite me chamou. Ela queria tanto um neném! Me trazes ele, de vez em quando, só pra eu ver? Não conta pra ele, nada dela. Essa vizinhança é muito fofoqueira. Vai viver a tua vida, tu e o meu neto. Mas não esquece dela. Linda ela, não era, ela? Lá se foi, enorme, lenta, atender seus clientes. O menino cresceu, joga futebol com os amigos, moleque de rua. Seu nome é Anjo.

(Edyr Augusto – 2016)

Autor

  • Edyr Augusto Proença

    Edyr Augusto Proença é jornalista, escritor, dramaturgo e diretor de teatro, trabalhou como radialista e redator publicitário e também produziu jingles. Suas narrativas estão todas ancoradas na realidade paraense. Em 2013, com a publicação de Os éguas na França (com o título Belém), o autor ganhou destaque na cena literária parisiense. O livro recebeu, em 2015, o prêmio Caméléon de melhor romance estrangeiro, na Université Jean Moulin Lyon 3. Desde então, seus romances vêm sendo traduzidos para o francês. Pela Boitempo, publicou Eu já morriGeração 90 - Os transgressoresCasa de cabaUm sol para cada umSelva concretaPssica, BelhellOs éguas e Moscow.

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