Fui a dois lançamentos de livros na mesma noite. Dois endereços distantes, duas situações que se assemelhavam somente por serem lançamentos, os livros em nada se pareciam, menos ainda os autores.
O primeiro, um intelectual, inteligência sendo desfiada num discurso que me emocionou e fez reerguer em mim certo entusiasmo por sonhos que andam meio adormecidos. O outro, um lançamento frio, elegância desperdiçada no vazio.
O caminho de volta me trouxe pensando naquelas situações. Depois escorreguei sozinho por outras lembranças, dessas que nos vêm sem aviso, que furam a fila, que chegam de longe…
Andei lendo uma moça escritora e me entusiasmei. Em conversa com ela, falei-lhe de como me agradava o modo como escrevia: você escreve como quem passa o pente nos cabelos compridos e lisos. Falei da fluidez na organização, no ritmo, nas coisas bem engatadas, entrelaçadas, significando, funcionando de forma boa. Uma inquietação que me trazia sossego.
Mas os cabelos lisos e compridos, o pente escorregando, essa imagem quase perdida, foi a lembrança que entrou sem aviso.
Era minha avó penteando os cabelos que desciam até a cintura. Domingo à tarde, visita obrigatória. Eu era apenas um garoto de dez anos de idade. Minha avó fumava cachimbo, esperando a água ferver na chaleira, depois o café no bule. Tomava banho e vinha perto. Enquanto conversava, deslizava o pente nos cabelos.
Lembro minha avó sempre com o mesmo vestido de cor cinza, feito em casa, feito à mão. Não me lembro dela, se não à beira daquele fogão de lenha.
Ouvia uma canção que dizia "vi no horizonte azul, a tarde desmaiar, a noite aproximar, enchendo de tristeza…" Meu pai falou no tom de sempre pai: Ouça a música mais baixo que sua mãe acabou de ligar dizendo que a avó Maria de vocês morreu. Eu era um adolescente e aquela dor era de minha mãe, que depois chegou de viagem e narrou a morte silenciosa de vovó. Não foi doença, foi o tempo.
Uma lembrança distante e que não dói. As que doem são as mais próximas. Eram três filhos, minha mãe a mais nova. Agora dou por conta de que os três também já morreram, que a família morreu. Minha avó Maria, tia Isaura, tio Persiliano, minha mãe, também Maria.
Volto meu pensamento ao homem apaixonado pela liberdade e seus sonhos dentro de um livro. Não, nós não somos felizes.
Eu era um garoto olhando minha avó por trás da fumaça do café. Lembranças nem sempre são saudades e amanhã, talvez, nem mais essa imagem.
O que dói em mim agora é essa vontade de escrever um poema que fale de minha mãe.
Minha mãe tinha o coração de um passarinho.
Edmir Carvalho Bezerra
- Poemas de Mário Cesariny – ‘Voz numa pedra’ e outras falas
- Nua, és tão simples como uma de tuas mãos – Poema de Pablo Neruda
- “Sem fim”, “Svalbard” e outros belos poemas — Beth Brait Alvim
- Influência das Comunidades para Edificação de uma Educação Melhor em Moçambique
- “Cosmópolis” – A maestria da escrita de Carlos Pessoa Rosa
- A crônica viva de Fernando Dezena – De Sarney a Paquetá







Lindo texto, poeta!
Belo. Muito belo!
Leitura que nos transporta ao cotidiano onde a poesia ilumina a saudade.
D. Edmir, crônica, conto, poesia, está tudo reunido em O que dói em mim… Com sensibilidade aguçada. Com propriedade. A literatura mantém-se de pé. Firme.