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Poemas de Mário Cesariny – ‘Voz numa pedra’ e outras falas

Poesia – Ver-O-Poema

História de cão

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada

De Manual de Prestidigitação (1956)


voz numa pedra

Não adoro o passado
não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Isis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes

assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco em flecha negro e azul do vento

Não digo como o outro: sei que não sei nada
sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do menstruo
rosa viva diante dos nossos olhos

Ainda longe longe essa cidade futura
onde «a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela»

Os pregadores de morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?

Passa-me então aquele canivete
porque há imenso que começar a podar
passa não me olhes como se olha um bruxo
detentor do milagre da verdade

a machadada e o propósito de não sacrificar-se
não construirão ao sol coisa nenhuma
nada está escrito afinal

1957, in Pena Capital


A 10.000 metros de profundidade

A 10.000 metros de profundidade
o rosto deambulador
do soldado
que não quis morrer
grita o seu radioso segredo:

Abre as portas do teu coração
é tão fácil perder
o homem das águias
que nunca mudam

Ele
em verdade
está só
e nunca
foi ouvido

pena capital (estado segundo) — Assírio & Alvim, 1982

Foto do autor

Mário Cesariny (1923-2006) foi um poeta, tradutor, crítico, ensaísta e artista plástico nascido e falecido em Lisboa, Portugal. Considerado um dos grandes mestres do Surrealismo português, produziu uma extensa obra literária, da qual destacam-se: “Corpo Visível (1950)”, “Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano” (1952); “Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos” (1953); “Manual de Prestidigitação” (1956); “Pena Capital” (1957); “Alguns Mitos Maiores e Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação Pelo Autor” (1958); “Antologia do Cadáver-Esquisito” (1961); “Antologia Surreal/Abjecion(ismo)” (1963); “A Intervenção Surrealista” (1966); “Titânia e a Cidade Queimada” (1977). Em 2005, recebeu a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, entregue pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio, e, em novembro desse mesmo ano, foi laureado com o Grande Prêmio Vida Literária, uma homenagem à sua notável contribuição para a literatura portuguesa.

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