História de cão
eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento
tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros
entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada
depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou
ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia
estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar
e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo
o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória
dos lados não ficou nada
De Manual de Prestidigitação (1956)
voz numa pedra
Não adoro o passado
não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Isis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco em flecha negro e azul do vento
Não digo como o outro: sei que não sei nada
sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do menstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe essa cidade futura
onde «a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela»
Os pregadores de morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?
Passa-me então aquele canivete
porque há imenso que começar a podar
passa não me olhes como se olha um bruxo
detentor do milagre da verdade
a machadada e o propósito de não sacrificar-se
não construirão ao sol coisa nenhuma
nada está escrito afinal
1957, in Pena Capital
A 10.000 metros de profundidade
A 10.000 metros de profundidade
o rosto deambulador
do soldado
que não quis morrer
grita o seu radioso segredo:
Abre as portas do teu coração
é tão fácil perder
o homem das águias
que nunca mudam
Ele
em verdade
está só
e nunca
foi ouvido
pena capital (estado segundo) — Assírio & Alvim, 1982
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- Nua, és tão simples como uma de tuas mãos – Poema de Pablo Neruda
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- “Cosmópolis” – A maestria da escrita de Carlos Pessoa Rosa
- A crônica viva de Fernando Dezena – De Sarney a Paquetá






