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“A lírica radical de Mário de Andrade”, por Claudio Daniel

Mário de Andrade

Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade, publicado em 1922, é uma reunião de poemas da fase mais inventiva e radical do Modernismo brasileiro. Aliás, 1922 é um ano muito representativo para as vanguardas literárias: enquanto no Brasil acontecia a Semana de Arte Moderna, T. S. Eliot publicava o poema Terra devastada, James Joyce lançava o romance Ulisses e César Vallejo, o livro Trilce, obras que abalaram os conceitos tradicionais de literatura, baseados em modelos do século XIX, como o soneto parnasiano e o romance realista.

A década de 1920 foi marcada pelo crescimento da urbanização e da indústria, pela influência crescente dos meios de comunicação, como o rádio e o jornal diário, e por formas de entretenimento popular, como o cinema. Na música, as bandas de jazz faziam sucesso internacional e compositores eruditos como Igor Stravinski causavam escândalo com obras inovadoras como o balé A sagração da primavera. Artistas plásticos como Braque e Picasso criaram o cubismo, técnica de composição baseada na substituição das representações do espaço tridimensional (e, portanto, da perspectiva) pela apreensão simultânea dos diversos planos, decompostos e geometrizados. Grupos literários inspirados nos novos tempos reuniam-se em bares e cafés em cidades como Zurique, Paris, Londres e Berlim, onde surgiram movimentos como o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo.

As primeiras décadas do século XX foram marcadas ainda pelo advento da psicanálise, pelas lutas operárias e populares e sobretudo pela Revolução Russa de 1917, que desencadeou uma nova era na humanidade, a era da revolução socialista. Enquanto isso, no Brasil, ainda dominado por uma oligarquia ligada à economia cafeeira, artistas e intelectuais tomavam conhecimento do que acontecia na Europa, liam os manifestos futuristas de Marinetti, as revistas literárias europeias e criavam novas formas poéticas, conciliando a influência que vinha do exterior com a própria cultura brasileira. O resultado desse torvelinho foi a Semana de Arte Moderna, realizado em 1922 no Theatro Municipal de São Paulo, que revelou poetas e prosadores como Mário e Oswald de Andrade, Graça Aranha, Menotti del Picchia e Ronald de Carvalho. O evento contou ainda com a participação de outros artistas, como a pintora Anita Malfatti, o escultor Victor Brecheret e o compositor Heitor Villa-Lobos.

É nesse contexto cultural que devemos situar o livro Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade, um dos frutos mais maduros de nosso Modernismo. O livro chama a nossa atenção já pelo seu Prefácio interessantíssimo, em que o poeta apresenta novas ideias, como a do verso harmônico. Escreve o poeta: “Sei construir teorias engenhosas. Quer ver? A poética está muito mais atrasada que a música. Esta abandonou, talvez mesmo antes do século 8, o regime da melodia quando muito oitavada, para enriquecer-se com os infinitos recursos da harmonia. A poética, com rara exceção até meados do século XIX francês, foi essencialmente melódica. Chamo de verso melódico o mesmo que melodia musical: arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivos, contendo pensamento inteligível. Ora, se em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais (...) fizermos que se sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas palavras, pelo fato mesmo de se não seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para a nossa sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias. Explico melhor: harmonia: combinação de sons simultâneos. Exemplo: ‘Arroubos... lutas... setas... cantigas... povoar’. Estas palavras não se ligam. Não formam enumeração. Cada uma é frase, período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico”.

Um bom exemplo dessa teoria poética é a peça intitulada Inspiração, primeiro poema da Pauliceia desvairada:

São Paulo! comoção de minha vida…
Os meus amores são flores feitas de original!…
Arlequinal!… Traje de losangos… Cinza e ouro…
Luz e bruma… Forno e inverno morno…
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes…
Perfumes de Paris… Arys!
Bofetadas líricas no Trianon… Algodoal!…
São Paulo! comoção de minha vida…
Galicismo a berrar nos desertos da América!

Em diversos outros poemas do volume, Mário de Andrade utiliza esse recurso, de maneira bastante econômica, como em Tietê:

Era uma vez um rio...
Porém os Borbas-Gatos dos ultra-nacionais esperiamente!
Havia nas manhãs cheias de Sol do entusiasmo
as monções da ambição...
E as gigantescas vitórias!
As embarcações singravam rumo do abismal Descaminho...
Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!
Ritmos de Brecheret!... E a santificação da morte!
Foram-se os ouros... E o hoje das turmalinas!...
— Nadador! vamos partir pela via dum Mato-Grosso?
— Io! Mai!... (Mais dez braçadas.
Quina Migone. Hat Stores. Meia de seda.)
Vado a pranzare con la Ruth.

Esta não é, sem dúvida, a única inovação do volume, que apresenta ainda neologismos e estranhas construções metafóricas, mas chama a nossa atenção pela desarticulação do verso e da sintaxe, proposta que seria radicalizada, trinta anos mais tarde, com o advento da Poesia Concreta. No plano temático, a Pauliceia desvairada retrata a cidade de São Paulo, suas ruas, avenidas, táxis, feiras, festas, jogatinas (“Pauliceia – a grande boca de mil dentes”, escreve no poema Os cortejos) e investe na crítica social. Ao contrário de Oswald de Andrade, que por um curto período foi membro do Partido Comunista, Mário era católico, nunca se declarou de esquerda, mas tinha o olhar atento à realidade política e social do Brasil na época e o seu brado de protesto é a Ode ao burguês:

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os “Printemps” com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Farà Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suíça! Morte viva ao Adriano!
“Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
Um colar… Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!”
Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!…

— Claudio Daniel
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