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“Cabritos à solta” – Um conto do moçambicano Octaviano Joba

Era então quase tradição, em todo o país, amarrar cabritos à uma árvore ou tronco durante a pastagem,— deixando apenas uns poucos metros de corda para que o animal pudesse movimentar-se enquanto pastava. No entanto, tal prática de preender o cabrito à uma árvore servia para que o dito animal não fugisse do pastor ou se evadisse para propriedades circunvizinhas, como era hábito.

No Inverno, com todas as planícies verdejantes, cheirando a frescura pela tenrura do capim, isso nem era problema para os cabritos, até que nem sentiam a amarração a que estavam sujeitos, tanto é que podia ver-se os tais ruminantes ali, elegantes e saltitantes, a engordar feito porcos. Porém, no Verão, com o Inferno do Sol rondando aos 40° Celsius, quase todo o ervaçal desaparecia, vendo-se apenas pingos de capim, e um mar de terra seca. Só os vales resistiram, frescos, à fúria estridente do Sol. No entanto, nesse tempo de Verão, era também lá no vale onde o Pastor Xipico Chico recolhia o alimento para abastecer os cabritos nas suas respectivas árvores onde ficavam amarrados. Xipico Chico preferia ter essa massada a deixá-los pastar livremente, porque quando isso sucedia,— verdade seja dita—, alguns cabritos desapareciam misteriosamente, sem deixar rastros, porém, quando por alguma circunstância deixassem alguns rastros, não valia então a pena arrastá-los até à sua procedência, pois já estavam há “milhões de milhas”, noutra margem do rio.

Certo dia, porém, certo cabrito, a que chamavam de búfalo, — pelo seu enorme tamanho—, então cansado do capim amarelado e desnutrido; com o Sol a fervilhar-lhe o corpo corpulento, pensou em fugir daquela árvore onde tinha sido amarrado, pois estava há dias que não se alimentava direito, e nem havia sombra confortável no local. O “búfalo” pensou em
fugir, e fugiu. Fugiu descendo pelo vale, passando por uma parte estreita do rio, balançando a torto e direito numa jangada, até à outra margem.

Nenhum cabrito até então tinha imaginado que fosse possível desprender-se daquela corda, daquela árvore, e “viver a vida numa boa” em algum “vale” ou “Paraíso”. No entanto, a fuga do Cabrito-Búfalo foi tão memorável para a classe caprina, que transformou-se num marco revolucionário, que passou a designar-se, posteriormente, de Revolução dos Cabritos.
A partir daquele dia, nenhum cabrito então se conformou em ser amarrado a nada, de tal modo que todos se manifestavam rebeldes e violentos, cabeceando árvores e tudo, até que revoltaram-se contra o próprio Xipico Chico que os alimentava. Nessa tentativa de fuga, houve uns tantos que morreram sangrentos, batendo a própria árvore onde estavam amarrados.
Volvido algum tempo, todos os cabritos desapareceram do terreno; vivos, porém fugitivos. A manada estava andando em debandada. Nem a competência, muito menos a inteligência e a força de Xipico Chico foram suficientes para detê-los ou devolvê-los para o seu respectivo recanto, na sombra da árvore.

O tempo passou, — o tempo sempre passa. Os cabritos, cansados então de andar em manada, —devastando tudo de verde que vissem pela frente, sobretudo pelas machambas alheias, —cada um resolveu andar à sua sorte, porque, na luta pela sobrevivência, derrubavam-se uns aos outros pelos carreiros e atalhos, disputando do mesmo capim. Hoje, enquanto os grandes cabritos,— bodes e cabras—, tornaram-se selvagens pelas florestas e savanas, os pequenos andam pelas estradas, barracas e mercados, derrubando bacias de hortaliças das desisperadas “mamanas 1 “.

1 Senhoras

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Autor

  • Octaviano Joba é o pseudônimo de Octávio João Baptista, natural da Cidade de Quelimane. É professor do Ensino Primário (Fundamental),  poeta e prosador. Foi colaborador do projecto literário afro-brasileiro IdeiArte-Cultura; e membro da Academia Mundial de Cultura e Literatura. Foi colaborador de diversas revistas literárias electrónicas, e co-autor de antologias nacionais e internacionais. Foi seleccionado em 1º lugar no Primeiro Desafio Literário Internacional da Revista Inversos, com o seu poema "Seu Amor Morto", num universo de 84 inscritos. Participou no 2º Concurso "Novos Talentos de Literatura — José Endoença Martins" (2018-2019), organizado pela FURB— Universidade Regional de Blumenau (Brasil). Foi um dos dez finalistas do concurso de contos do Prêmio Literário Carlos Morgado (PLCM)— "Novas Vozes, Novas Estórias"—, 2ª edição (2024), num universo de 170 inscritos (Moçambique). É colaborador do projeto literário "Folhinha Poética" desde 2016, e autor do blog "Vice-Verso"— Octaviano Joba.

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