Nota ao leitor: Este texto é uma apresentação ensaística. As informações históricas sobre Miguel de Cervantes e sobre Dom Quixote de La Mancha baseiam-se em pesquisas acadêmicas reconhecidas. As falas atribuídas à professora Maria Augusta da Costa Vieira são reconstruções literárias inspiradas em suas interpretações críticas, não citações literais. O objetivo é oferecer um panorama acessível, sensível e rigoroso da obra e de seu autor.
Poucas obras atravessam os séculos conversando diretamente com cada nova geração que as encontra. Dom Quixote de La Mancha é uma dessas raridades. Quatrocentos anos após sua publicação, o romance permanece vivo, inquieto e profundamente humano. Para compreender esse fenômeno, seguimos o fio da vida de Miguel de Cervantes e as interpretações de estudiosos como a professora Maria Augusta da Costa Vieira, dedicada ao universo cervantino.
A Fascinação Inicial: Por que Cervantes?
A professora Maria Augusta recorda que seu interesse por Cervantes surgiu ainda na graduação, ao ler Dom Quixote pela primeira vez. O impacto foi imediato. A complexidade do texto, que desafia o leitor a acompanhar seus jogos narrativos e reflexões sobre a literatura, tornou-se o motor de sua carreira como pesquisadora.
A Vida Enigmática de Cervantes
Apesar da fama monumental de seu livro, a biografia de Cervantes é marcada por lacunas. Muitos documentos não sobreviveram, e poucos registros permitem reconstruir sua vida de maneira completa. Sua trajetória mistura fatos comprovados e zonas de sombra que a crítica tenta recompor com cautela.
Origens e formação
Cervantes nasceu em 1547, em Alcalá de Henares, então mais importante que Madrid. Pertencia a uma família com dificuldades econômicas e, segundo alguns estudos, poderia descender de judeus conversos. Embora sua formação escolar permaneça desconhecida, sua obra revela um leitor atento e sofisticado.
O soldado e o cativo
Antes de se dedicar à literatura, Cervantes foi soldado. Participou da célebre Batalha de Lepanto (1571), episódio que considerava o mais honroso de sua vida. Ferido no combate, teve a mão esquerda debilitada. Pouco depois, sua embarcação foi capturada, e ele passou cerca de cinco anos cativo em Argel (1575–1580). Ao retornar à Espanha, publicou em 1585 sua primeira obra, La Galatea.
A Gênese de Dom Quixote
A primeira parte de Dom Quixote foi publicada em 1605, tornando-se imediatamente popular. A segunda só surgiria em 1615, motivada em parte pela divulgação, no ano anterior, de uma falsa continuação assinada por Alonso Fernández de Avellaneda, episódio que Cervantes integrou de modo engenhoso à narrativa.
Por que Dom Quixote é tão importante?
Segundo a professora Maria Augusta, vários fatores explicam a permanência da obra:
- Universalidade: crianças, jovens e adultos encontram algo próprio no livro.
- Questões essenciais: verdade, ética, idealismo, justiça e a relação entre ficção e realidade.
- Loucura reveladora: o protagonista age de modo insensato, mas pensa com clareza surpreendente.
- Inovação literária: metalinguagem, humor, crítica social e personagens conscientes de existir dentro de um livro.
O diálogo entre Dom Quixote e Sancho Pança (um letrado e um analfabeto) permanece um dos mais ricos da literatura, combinando comicidade e profundidade filosófica.
Sendo breve
Mais do que uma sátira dos livros de cavalaria, Dom Quixote é um laboratório narrativo que antecipou recursos usados por Tolstói, Machado de Assis, Borges e Kafka. Um romance sobre leitura, percepção e construção de sentido. Cervantes articula tudo isso com humor e humanidade — razão pela qual sua obra permanece viva.
Referências Bibliográficas
Auerbach, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2009.
Bloom, Harold. Gênio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
Canavaggio, Jean. Cervantes. São Paulo: Editora 34, 2016.
Close, Anthony. The Romantic Approach to Don Quixote. Cambridge: CUP, 1978.
Riley, E. C. Cervantes’s Theory of the Novel. Oxford: OUP, 1992.
Watt, Ian. A Ascensão do Romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
- “Sem fim”, “Svalbard” e outros belos poemas — Beth Brait Alvim
- Influência das Comunidades para Edificação de uma Educação Melhor em Moçambique
- “Cosmópolis” – A maestria da escrita de Carlos Pessoa Rosa
- A crônica viva de Fernando Dezena – De Sarney a Paquetá
- ‘O que se faz na Cop, fica na Cop’ – por Edyr Augusto Proença
- Como a literatura nos desperta para a vida | Ver-O-Poema






