Agostinho Neto (nascido em 17 de setembro de 1922, Icolo e Bengo, Angola — faleceu a 10 de setembro de 1979, em Moscou, na União Soviética). Foi um poeta, médico e político angolano que serviu como o primeiro presidente (1975-79) da República Popular de Angola.
Neto tornou-se conhecido em 1948, quando publicou um volume de poemas em Luanda e aderiu a um movimento cultural nacional que visava “redescobrir” a cultura indígena angolana (semelhante ao movimento da Negritude nos países africanos francófonos). Sua primeira de muitas prisões por atividades políticas ocorreu pouco depois, em Lisboa, onde havia ido estudar medicina.
Retornou à sua terra natal como médico em 1959, mas foi preso na presença de seus pacientes em junho de 1960. Quando estes protestaram, a polícia abriu fogo, matando alguns e ferindo 200. Passou anos detido em Cabo Verde e em Portugal, onde escreveu poesia. Em 1962 fugiu para o Marrocos e foi eleito presidente do MPLA. Quando Angola se tornou independente em 1975, Neto foi proclamado presidente. Governou até sua morte em 1979.
Três poemas de Agostinho Neto
À reconquista
Não te voltes demasiado para ti mesma
Não te feches no castelo das lucubrações infinitas
Das recordações e sonhos que podias ter vivido
Vem comigo África de calças de fantasia
desçamos à rua
e dancemos a dança fatigante dos homens
o batuque simples das lavadeiras
ouçamos o tam-tam angustioso
enquanto os corvos vigiam os vivos
esperando que se tornem cadáveres
vem comigo África dos palcos acidentais
descobrir o mundo real
onde os milhões se irmanam na mesma miséria
atrás das fachadas de democracia de cristianismo de igualdade
Vem comigo África de colchões de molas
e reentremos na casinha de latas esquecidas no musseque da Boavista
até onde já nos empurram
ao nos quebrarem as casas de meia água de Cayette
e à volta de fogo consolador das nossas aspirações mais justas
examinaremos a injustiça inoculada no sistema vivo em que giramos.
Vem comigo África de colchões de esmola
regressemos à nossa África
onde temos um pedaço da nossa carne calcado sob as botas dos magala
– a nossa África
Vem comigo África do jitterburg
até a terra até o homem até o fundo de nós
ver quando de ti e de mim faltou
quanto da África esqueceu
e morreu na nossa pele mal coberta sob o fato emprestado
pelo mais miserável dos ex-fidalgos
Não chores África dos que partiram
olhemos claros para os ombros encurvados do povo que desce a calçada
negro negro de miséria negro de frustração negro de ânsia
e dêmos-lhes o coração
entreguemo-nos
através da fome da prostituição das cubatas esfuracadas
das chanfalhadas dos cipaios
através dos muros das prisões através da Grande Injustiça
Ninguém nos fará calar
Ninguém nos poderá impedir
O sorriso dos nossos lábios não é agradecimento pela morte
com quem nos matam.
Vamos com toda a Humanidade
Conquistar o nosso mundo e a nossa Paz.
Adeus à hora da largada
Minha mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis
Mas a vida
matou em mim essa mística esperança
Eu já não espero
sou aquele por quem se espera
Sou eu minha Mãe
a esperança somos nós
os teus filhos
partidos para uma fé que alimenta a vida
Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areias ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco
e temer o rico
somos os teus filhos
dos bairros de pretos
além aonde não chega a luz eléctrica
os homens bêbedos a cair
abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos
com fome
com sede
com vergonha de te chamarmos Mãe
com medo de atravessar as ruas
com medo dos homens
nós mesmos
Amanhã
entoaremos hinos à liberdade
quando comemorarmos
a data da abolição desta escravatura
Nós vamos em busca de luz
os teus filhos Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
vão em busca de vida.
Confiança
O oceano separou-me de mim
enquanto me fui esquecendo nos séculos
e eis-me presente
reunindo em mim o espaço
condensando o tempo
Na minha história
existe o paradoxo do homem disperso
Enquanto o sorriso brilhava
no canto de dor
e as mãos construíram mundos maravilhosos
John foi linchado
o irmão chicoteado nas costas nuas
a mulher amordaçada
e o filho continuou ignorante
E do drama intenso
duma vida imensa e útil
resultou certeza
As minhas mãos colocaram pedras
nos alicerces do mundo
mereço o meu pedaço de pão.
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