✦ Paula Tavares: uma poeta atávica e contemporânea ✦
Claudio Daniel
A poeta, romancista e historiadora angolana Ana Paula Tavares, que recebeu o Prêmio Camões neste ano, nasceu em 1952, em Lubango, e é reconhecida como uma das vozes mais criativas da poesia africana de língua portuguesa da atualidade. A autora graduou-se em Letras, realizou o doutorado em Antropologia na Universidade Nova de Lisboa e reside hoje na capital portuguesa. Sua obra poética e romanesca vem sendo publicada em Portugal, Brasil, França, Espanha, Suécia e outros países, sendo a autora angolana mais conhecida fora de seu país natal. Paula Tavares estreou em 1985, com o livro de poesia Ritos de passagem, que já apresenta algumas das características mais marcantes em sua escrita poética, como a presença da geografia angolana, sua fauna e flora, a erotização das frutas, relacionadas aos órgãos genitais, a presença da magia, do folclore e da religiosidade animista, e sobretudo a discussão sobre o papel da mulher na sociedade angolana, ainda submetida à herança patriarcal.
A esse respeito, escreve a professora Carmen Lúcia Tindó Secco: “Nos anos 1980, Paula foi uma das responsáveis pela fundação, em Angola, de uma nova dicção poética que repensava a questão da sexualidade reprimida das mulheres e não se eximia de refletir sobre as desilusões sociais, mostrando-se contrária à opressão e à dor. As mulheres angolanas, além de vítimas do machismo – tanto o exercido pelo colonialismo, como o existente em algumas tradições autóctones – o foram, também, nas guerras que perduraram mais de 40 anos em Angola”.
Carmen Lúcia observa ainda que esta é “uma poesia que carrega dentro de si contradições inúmeras, complexidades enormes, fazendo interagirem, em tensão, os sentidos telúricos e o espólio advindo de culturas que, através dos séculos, habitaram Angola: tradição e modernidade; a aridez de dunas junto às fronteiras com a Namíbia e a liquidez de rios e lagos angolanos; provérbios locais e legados culturais trazidos pela colonização portuguesa; mitos e cantos coletivos mumuílas, originários da região da Huíla, no sudoeste angolano, e heranças de epopéias homéricas – tudo isso contracena com o olhar e os afetos do sujeito lírico, com sua solidão de poeta. É uma poiésis que opera com o exercício metalinguístico do escrever-reescrever poético e, ao mesmo tempo, com uma ressignificação da oralidade das tradições do sul de Angola. Põe em cena uma voz lírica feminina reveladora dos abusos de poder sofridos tanto pelas mulheres do contexto rural do sudoeste angolano como pelas de vivência urbana. Também alegoriza criticamente os dramas da fome, a dor e a perda da inocência das crianças nascidas ao som de tiros e explosões de minas.
Alguns signos e metáforas atravessam a obra de Paula, sendo vitais para a compreensão de sua poesia: sangue, ritos, árvores, buganvília, grito, água, lago, barro, terra, frutos, óleo de palma, bois, mitos, religiosidades, deserto, dunas, lua, sol, unicórnio, sonhos, teias, tecidos, fios da História e das histórias. A imagem da tecedeira, na poesia de Paula, remete, metaforicamente, ao próprio processo de criação poética.
Em Ritos de passagem (1985), seu livro de estreia, a poeta angolana reúne 24 poemas, divididos em três seções, acompanhados por ilustrações de Luandino Vieira. A primeira seção do livro, Do cheiro macio ao tato, é composta de nove poemas, oito deles dedicados a frutas típicas angolanas: abóbora menina, maboque, anona, mirangolo, nocha, nêspera, mamão, manga, e o nono poema dedicado a um inseto, o matrindindi, sendo todas essas frutas erotizadas e associadas ao ato sexual. No poema dedicado à anona, por exemplo, temos “o pequeno útero verde da casca”; no poema sobre o mirangolo, o “testículo adolescente purpurino” que “corta os lábios ávidos / da vida”; na peça sobre o mamão, “frágil vagina semeada”; no poema sobre a nêspera, ela é chamada de “doce rapariguinha‑de‑brincos”. O próprio desejo sexual é representado na forma de uma manga. Os poemas desta seção – e do livro como um todo – exploram o universo das sensações e sinestesias, as imagens sexuais, os elementos da natureza (insetos, flores, frutas, árvores, rios), os provérbios e tradições mágicas, em composições concisas, substantivas, sem pontuação e disposição geométrica na página. Referências também ao mundo do trabalho rural, costumes tribais e religiosidade, sempre com sutileza, delicadeza e minimalismo. O último poema desta seção é sobre um inseto, o matrindindi, descrito, metaforicamente, como “bicho mecânico / movido / a quartzo”.
Na segunda seção do livro, Navegação circular, temos um conjunto de quatro poemas, cujos personagens são animais metafóricos: abelha, flamingo, vaca e boi, que representam o amor impossível (entre ave e peixe), o desejo de morte, a solidão, e ainda imagens teratológicas, como a do “boi à vela”.
Na terceira seção, Cerimônias de passagem, temos um conjunto de dez poemas, que encenam costumes tribais, como a troca de uma mulher, prometida em casamento, por um boi, o uso da tábua Eyleksa nas costas das meninas, para manterem as colunas eretas, os ciclos das colheitas, entre citações de provérbios populares. Poemas de amor com imagens violentas, dolorosas (“Desossaste-me / cuidadosamente / inscrevendo-me / no teu universo / como uma ferida”; “colonizamos a vida / plantando / cada um no mar do outro / as unhas da distância da palavra da loucura”).
Conforme escreve Carmen Lúcia Tindó Secco, “Nesse primeiro livro de Paula Tavares, persegue os cheiros e sabores da terra, redescobrindo a própria sexualidade. A tacula vermelha e o barro branco que cobrem os corpos das raparigas assinalam a sacralidade das cerimônias rituais da puberdade.” (Tacula é uma árvore sagrada de Angola que produz madeira e tinta vermelha, usada nos rituais de iniciação). Outra metáfora que permeia a obra de Paula Tavares é o barro. Em O lago da lua (1999), essa metáfora está associada aos sentidos profundos das origens. A imagem do lago remete aos sonhos que resistiram à dor e à guerra; funciona como espelho no qual o sujeito poético busca identidade esboroada.
Já em O lago da lua (1999), seu segundo livro, encontramos temas recorrentes: o sangue menstrual, indício da puberdade e da entrada da mulher na idade fértil; a religiosidade ancestral, presente nas referências aos oráculos (o mundjiri, “pau de adivinhação”), altares, oferendas, espíritos familiares etc.; o tema da “morte de amor”, eco das cantigas trovadorescas: “morro porque estou ferida de amor”; intertexto, epígrafe e paródia do Cântico dos cânticos de Salomão: “o que queres esconder de mim, filha de Sulamite”; a ideia do amor como partilha: “divide comigo os intervalos da vida”; o amado vindo de um país estrangeiro: “deve ser um estranho país / o país do meu amado”; a metáfora de atravessar o espelho em busca de outra identidade, outro plano de existência; e imagens relativas a gestação, parto e destino das crianças: “estranha árvore de filhos / uns mortos e tantos por morrer”; “de quantos partos se vive / para quantos partos se morre”; as “crianças de vidro” (frágeis) “enchendo de água até às lágrimas / enchendo a cidade de estilhaços / procurando a vida / nos caixotes do lixo”; “carregam a morte sobre os ombros / despejam-se sobre o espaço / enchendo a cidade de estilhaços” (alusão às minas terrestres).
A partir de O lago da lua (1999), a poesia de Paula Tavares discute novos desafios políticos e sociais enfrentados pelo país, após décadas de luta pela libertação nacional, seguida da guerra civil entre MPLA e UNITA. Conforme diz Carmen Lúcia Tindó Secco: “O eu lírico então expõe o corpo ferido, a pele pintada não mais de tacula, mas de cicatrizes. Reservatório da memória e espelho alegórico do verbo criador, esse lago se torna locus sagrado de ritual do verbo poético. Ao evocar tradições ancestrais, ‘a máscara de Mwana Pwo’, usada nos rituais de puberdade dos povos lunda‑txókwe, mostra que a voz lírica atravessa o espelho em dois sentidos: o presente e o passado, o existencial e o histórico, o enunciado e a enunciação que reencena camadas antigas da memória.” Carmen Lúcia ainda afirma: “Juntando os cacos do país dilacerado, Ana Paula Tavares lida com as ruínas da história, recompondo cenas das tradições fragmentadas sob promessas formuladas ao longo de séculos de opressão. Em especial no livro Ex‑votos, sua poética adota vertente labiríntica e religiosa — no sentido etimológico de religação cósmica com raízes ancestrais.”
Poeta atávica e contemporânea simultaneamente, sacra e profana, erótica e engajada, nacional e cosmopolita, a poesia de Ana Paula Tavares transcende fronteiras, códigos culturais e reafirma-se como uma das vozes mais instigantes da poesia em língua portuguesa na atualidade.
Claudio Daniel
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