Acesso ou cadastro Autor(a)

Poemas de Déo Silva (1937 – 1983)

REVELAÇÃO
(trecho)

I.

Dentro do poema estou.
Não sob formas tênues e
claras. Não como uma frustração impronunciável
que o tempo dissolve no ar, ou como
uma paisagem fácil, que degrada os espelhos.
Não apenas cheio de vivências íntegras
e com a palavra inútil em sua lógica.
Mas, oculto e denso,
na mutação que sou de mim mesmo.

&

AS FLORES ESPÚRIAS

As flores espúrias
crescidas apenas
em sua inércia
no jarro ficaram

Que tempo lhes mede
o caminho
se o caminho das flores
como o de nenhum peixe
é estar?

A morte lhes penetra as
pétalas de náusea
ou as envolve
na manhã do intacto?

As flores
sem o verbo a decompor-se
são o medo ou a inibição de ir
para dentro de si mesmas
As flores espúrias
em cujo exercício me nego

&

ÁRVORE

A árvore paradoxal
na sala
chora fogo e neve

Ventos de terras esquecidas
não a sopram
porque
em dezembro
as janelas não se abrem para
o abismo

A árvore paradoxal
só constringe
o menino sem estátua
sem rio
sem fruto

Mas extasia o mundo.

&

PEDRA

                                A pedra
sofre-se no tempo
sob o impacto de si mesma.
E recria o som,
                                            a sombra,
                                                                             o sono,

                                                                                                     o sal.

A pedra,
imóvel no espaço,
não gera o pó ingênuo.
Trabalha a fome
e o mito.

A pedra
medra a pedra.
E fulge-se,
e sente-se.

&

PERSPECTIVA DE UM EXERCÍCIO

Eis o de quanto, agora, preciso,
para meu encanto:
abrir a palavra
até descobrir-lhe
o núcleo fundamental 
e, depois, 
semeá-la numa terra sem memória
de que flores verbais 
se abrirão, um dia,
a desprender
o olor
de uma estranha primavera.

Abrir a palavra 
que ficou longe,
em seu misterioso concreto
e desvendar,
no imo tônico do verbo,
a verdade agônica
de um desejo
que seja, sobretudo, eterno. 

Abrir a palavra
que eu não tenho agora
e de que a alma se nutre
para o ânimo da fantasia.

Abrir, enfim, a palavra
de que nasce
o fruto humano de cada dia,
para o fenômeno 
só 
da poesia.

&

DO PÁSSARO EM QUE VOO

O meu pássaro de prata
se deslumbra, com a intacta
existência do seu fim.

Não finge o voo. Só o intenta,
quando a esfinge, que o sustenta,
se abre em volta de mim.

O meu pássaro de prata
da essência não se aparta
que o move em minha mão.

No entanto, fosse possível,
para torná-lo sensível,
dar-lhe o canto. O voo, não. 

&

LADO INÚTIL 


Tua infância é muita,
para o que envelhece,
dentro do absurdo
que me torce e tece.

Tua infância é pouca,
para o que me cabe.
(E que a vida seja
o que, em mim, não sabe).

&

ESTÁGIO

O enriquecimento do ódio
e o nojo oculto, ainda, na fala.

O corpo, em densa discórdia,
e o caminho sem espaço.

O odor de sonho, entre as plantas,
e o chão, sem o ânimo do sol.

O erro acasalado na mente
e o escárnio preso à alma.

O silêncio dos últimos pecados
e a chuva para a semente inútil.

E, enfim, o despejo do que, na lida,
não foi mistério, nem nada.

&

TESTAMENTO

Deixo-te o verbo
que afugenta o Homem
das imprecações
que, em si, o consomem.

Deixo-te o amor,
amplo e concreto,
junto à sesmaria
do teu desafeto.

Deixo-te, em segredo,
no sol que expirou,
a última bênção
que herdei do que sou.

Deixo-te um tesouro
de súpera importância:
minh’alma fracionada
pela tua infâmia.

Deixo-te a memória
do quanto perdi,
no sexo convulso
a que me rendi.

Deixo-te o inverno
que nutre meus passos
e a alegoria
dos meus planos lassos.

Deixo-te, no ser,
o tudo que é teu
e o todo, que é nada,
do muito que é meu.

Deixo-te, em letras,
meu jeito de vida:
um excesso na mente
e um esbarro na ida.

Deixo-te, enfim,
minha sorte vã
e a luz que escondi
no meu amanhã.

***

Foto do autor

Déo Silva [Caxias-MA, 15 de agosto de 1937 — em viagem: Caxias – São Luís, 27 de setembro de 1983]. Nome literário do poeta e jornalista brasileiro Raymundo Nonato da Silva. Esteve ligado ao movimento da experiência concretista no Maranhão ao lado de nomes como Ferreira Gullar, Nauro Machado, Bandeira Tribuzi e José Chagas, tendo participado da I Mostra de Arte Concreta, no Ceará, na década de 70. Funcionário do Banco do Brasil, peregrinou pelo país, tendo deixado poemas publicados em vários jornais desses lugares. Em Manaus, esteve vinculado ao Clube da Madrugada, grupo que congregava escritores daquela região. Deixou marcas, também, pelos estados do Pará e de São Paulo. O poeta estreou com “Ângulo noturno” (Edições Jaguarema, 1959), livro de alta poesia com certo vínculo ao movimento neoconcreto, mas que logo Déo alça voos livres de qualquer enquadramento de escola literária. Segue publicando em jornais e cadernos literários até a publicação de “Equação do verbo” (SIOGE, 1980). Acredita-se que o hiato entre a publicação de um livro e outro tenha relação com o nível de exigentismo de Déo na manipulação do verso. Afirmava o poeta: “A palavra, em verdade, é funda em si mesma. Raso, contudo, é o nosso poder de entendê-la.”. Trabalhos inéditos e outros materiais do poeta se perderam em meio às mudanças de casa. Nos quarenta e seis anos de existência física, Déo foi a revelação de um grande espírito humano e artista.

Compartilhe esse post!

5 1 voto
Classificação do artigo
Inscrever-se
Notificar de
guest
0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários

Outros posts

Cadastre-se como autor(a) no Ver-O-Poema.

Após se cadastrar você poderá enviar suas próprias postagens e nós cuidaremos das configurações.

assine nossa newsletter

postagens recentes

comentários recentes

divulgação

Cabeza de serpiente emplumada, novo livro de poesia de Claidio Daniel (Cajazeiras: Arribaçã, 2025)

vendas

Em Pssica, que na gíria regional quer dizer ‘azar’, ‘maldição’, a narrativa se desdobra em torno do tráfico de mulheres. Uma adolescente é raptada no centro de Belém do Pará e vendida como escrava branca para casas de show e prostituição em Caiena.
Um casal apaixonado. Uma intrusa. Três mentes doentias. Agora em uma edição especial de colecionador com capítulo extra inédito, conheça o thriller de estreia de Colleen Hoover, que se tornou um fenômeno editorial e best-seller mundial.
Editora Rocco relançou toda a sua obra com novo projeto gráfico, posfácios e capas que trazem recortes de pinturas da própria autora
Considerado o livro do ano, que virou febre no TikTok e sozinho já acumulou mais de um milhão de exemplares vendidos no Brasil.
A Biblioteca da Meia-Noite é um romance incrível que fala dos infinitos rumos que a vida pode tomar e da busca incessante pelo rumo certo.
Imagine parar por alguns instantes e desfrutar de um momento diário com alguém que te ama e tem a resposta para todas as tuas aflições.
0
Adoraria saber sua opinião, comente.x