
REVELAÇÃO
(trecho)
I.
Dentro do poema estou.
Não sob formas tênues e
claras. Não como uma frustração impronunciável
que o tempo dissolve no ar, ou como
uma paisagem fácil, que degrada os espelhos.
Não apenas cheio de vivências íntegras
e com a palavra inútil em sua lógica.
Mas, oculto e denso,
na mutação que sou de mim mesmo.
&
AS FLORES ESPÚRIAS
As flores espúrias
crescidas apenas
em sua inércia
no jarro ficaram
Que tempo lhes mede
o caminho
se o caminho das flores
como o de nenhum peixe
é estar?
A morte lhes penetra as
pétalas de náusea
ou as envolve
na manhã do intacto?
As flores
sem o verbo a decompor-se
são o medo ou a inibição de ir
para dentro de si mesmas
As flores espúrias
em cujo exercício me nego
&
ÁRVORE
A árvore paradoxal
na sala
chora fogo e neve
Ventos de terras esquecidas
não a sopram
porque
em dezembro
as janelas não se abrem para
o abismo
A árvore paradoxal
só constringe
o menino sem estátua
sem rio
sem fruto
Mas extasia o mundo.
&
PEDRA
A pedra
sofre-se no tempo
sob o impacto de si mesma.
E recria o som,
a sombra,
o sono,
o sal.
A pedra,
imóvel no espaço,
não gera o pó ingênuo.
Trabalha a fome
e o mito.
A pedra
medra a pedra.
E fulge-se,
e sente-se.
&
PERSPECTIVA DE UM EXERCÍCIO
Eis o de quanto, agora, preciso,
para meu encanto:
abrir a palavra
até descobrir-lhe
o núcleo fundamental
e, depois,
semeá-la numa terra sem memória
de que flores verbais
se abrirão, um dia,
a desprender
o olor
de uma estranha primavera.
Abrir a palavra
que ficou longe,
em seu misterioso concreto
e desvendar,
no imo tônico do verbo,
a verdade agônica
de um desejo
que seja, sobretudo, eterno.
Abrir a palavra
que eu não tenho agora
e de que a alma se nutre
para o ânimo da fantasia.
Abrir, enfim, a palavra
de que nasce
o fruto humano de cada dia,
para o fenômeno
só
da poesia.
&
DO PÁSSARO EM QUE VOO
O meu pássaro de prata
se deslumbra, com a intacta
existência do seu fim.
Não finge o voo. Só o intenta,
quando a esfinge, que o sustenta,
se abre em volta de mim.
O meu pássaro de prata
da essência não se aparta
que o move em minha mão.
No entanto, fosse possível,
para torná-lo sensível,
dar-lhe o canto. O voo, não.
&
LADO INÚTIL
Tua infância é muita,
para o que envelhece,
dentro do absurdo
que me torce e tece.
Tua infância é pouca,
para o que me cabe.
(E que a vida seja
o que, em mim, não sabe).
&
ESTÁGIO
O enriquecimento do ódio
e o nojo oculto, ainda, na fala.
O corpo, em densa discórdia,
e o caminho sem espaço.
O odor de sonho, entre as plantas,
e o chão, sem o ânimo do sol.
O erro acasalado na mente
e o escárnio preso à alma.
O silêncio dos últimos pecados
e a chuva para a semente inútil.
E, enfim, o despejo do que, na lida,
não foi mistério, nem nada.
&
TESTAMENTO
Deixo-te o verbo
que afugenta o Homem
das imprecações
que, em si, o consomem.
Deixo-te o amor,
amplo e concreto,
junto à sesmaria
do teu desafeto.
Deixo-te, em segredo,
no sol que expirou,
a última bênção
que herdei do que sou.
Deixo-te um tesouro
de súpera importância:
minh’alma fracionada
pela tua infâmia.
Deixo-te a memória
do quanto perdi,
no sexo convulso
a que me rendi.
Deixo-te o inverno
que nutre meus passos
e a alegoria
dos meus planos lassos.
Deixo-te, no ser,
o tudo que é teu
e o todo, que é nada,
do muito que é meu.
Deixo-te, em letras,
meu jeito de vida:
um excesso na mente
e um esbarro na ida.
Deixo-te, enfim,
minha sorte vã
e a luz que escondi
no meu amanhã.
***
