
É o cão vadio que encontra o velho osso.
– Provérbio –
.
O que eu sei do zambiano despilado? E do paquistanês? E dos outros tantos que explodiram? Quer saber como ficaram capados? Ora, Excelencíssimo: cada um deixa cair o que não pode segurar. Eu, Zeca Andorinho, seguro bem as minhas dependências. Não ando por aí a meter a boca no trombone. O senhor sabe: tudo cai, até nuvem tomba do céu. Quem sofre as culpas disso? Ninguém. Estou a sério, doutor. Não sei o que aconteceu — com todo o respeito da ignorância. Quando nascemos sabemos tudo, mas não lembramos nada. Depois, crescemos, vamos ganhando lembrança e encolhendo sabedoria. Mas eu, mesmo sendo feiticeiro, no assunto deste caso, não lembro nem sei. Os anjos é que são testemunhas miloculares. O melhor é entrevistar-lhes. Entreviste os anjos, meu caro senhor. A si eles não vão negar.
Até confesso uma coisa, Deus seja perdoável: eu não gosto as maneiras dos estrangeiros atuais. Quando éramos antigos passavam por aqui os longínquos e escorregavam com as nossas meninas. Mas não lhes carregavam de qualquer maneira. Nós escolhíamos, juntos, as moças leváveis. Agora, não. O desconhecido, num instantâneo, já fica marido sem sogro nem cunhado, ilegal no respeito do antigamente. Eu vejo o senhor, não pense que não vejo. Seus olhos são pescadores de belezas. Sua rede já se encravou na rocha funda. Essa Temporina usou o peixe para apanhar o isco, isso eu lhe digo, meu irmão.
Um segredo: com Temporina, tudo era mentira. Ela não era virgem. Eu só soube depois — tinha havido um caso entre ela e o padre. Sim, tudo se passara no obscuro, além da cortina. A igreja, para Muhando, sempre servia para algo. Esconder seus amores dos olhares invejosos dos sem amores. Assim, se descanse, caro Massimo. Aquela pele escamosa não vai durar sempre. Aquilo é sol de baixa duração. Um dia, sem que ninguém adivinhe, acontecerá como as cobras — ela descamará, aprontada para qualquer Verão.
Me escute, senhor: estou vivendo apenas em rascunho, amanhando uns biscatos de futuro. É que aqui, na vila, ninguém nos garante. Nem a terra, que é propriedade exclusiva dos deuses, nem a terra é poupada das ganâncias. Nada é nosso nos dias de agora. Chega um desses estrangeiros, nacional ou de fora, e nos arranca tudo de vez. Até o chão nos arrancam. Digo isto por vistoria: não confianço em ninguém, estamos ser empurrados para onde não há lugar nem data certa.
Há os que duvidam de meus poderes sobre o regime dessas vivências. E perguntam — será que a hiena vira cabrito? Mas eu posso perguntar, também: é o pescoço que carrega a cabeça ou vice-versa? Pois, esse moço há-de aprender — a amêndoa vai esmagar a formiga. Eu lhe digo e o senhor irá confirmar: o enteado do chefe vai apanhar lenha se quiser aquecer a panela. Mas isso é assunto nosso, deixemos isso para cá.
Agora, o senhor me pergunta por esses soldados que desapareceram-se. Pergunta-me se o soldado zambiano morreu. Morreu? Bem, morreu relativamente. Como? O senhor me pergunta — como se morre relativamente? Não sei, não lhe posso explicar. Teria que falar na minha língua. E é coisa que nem este moço não pode traduzir. Para o que havia que falar não há palavras em nenhuma língua. Só tenho fala para o que invento. Que eu, doutor, estou da
forma como o jacaré: sou feio e gigantoso, mas ponho ovo faz conta um passarinho. Porém, tenho diferença com esses tais bichos. Meus dentes não prestam serviço de assustar. Ao contrário: meus dentes são para os outros me morderem. Eu já ofereço facilidades a meus inimigos. Está ver minha educação? Falam muito de colonialismo. Mas isso foi coisa que eu duvido que houvesse. O que fizeram esses brancos foi ocuparem-nos. Não foi só a terra: ocuparam-nos a nós, acamparam no meio das nossas cabeças. Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro de nós. Está-me seguindo, completo?
Vamos pelas partes. De quem o senhor se desconfia? De mim? Você desconfia da prostituta? Vê-se bem que você nunca foi puta. Sem ofensa. É porque essa estória das explosões só vai contra as vantagens dela. Aquilo é um desnegócio para ela.
Analise bem: o que é que resta dos explodidos? Uma perna? Um olho? Uma orelha? Só sobram as pichotas dos gajos. Sim, o resto se evapora. Já me foi visto homem sem pila. Mas, agora, pila sem homem, me desculpe. O senhor me olha, ziguezangado. Pergunto-lhe ainda: alguém consegue tirar a água toda do mar? É o mesmo, mesmérrimo. Não se tira o sangue todo de um corpo. Então lhe inquiro mais: por onde foi esse sangue dos arrebentados? Por onde, que nunca sobrou nem gota? O senhor que é branqueado, o senhor não conhece as respostas.
Ainda lhe digo mais. Essa Ana Deusqueira, ela é quem implementa os funerais das pilas. Sim, ela é que lhes carrega e lhes faz o digno enterro. A fulana, coitada, tem o juízo roto. Cada pila a menos é mais um luto para ela, ela fica viúva em cada explosão. Agora, a gaja já semeou um cemitério completo. As campas variam de tamanho, só ela sabe o onde de cada uma. Falo por experiência certa, com esses olhos que hão-de comer a terra. As pilas foram enterradas como manda a lei daqui: viradas para poente, deitadinhas de lado. Os tomates todos inteirinhos, cada um ao lado do outro, seu irmão gémeo.
Estou quase terminando. Só adianto um aviso: quando caminhar olhe bem onde pisa. Eu lhe fiz o likaho de cágado para lhe proteger. Mas você nunca, mas nunca, pise qualquer maneira. A terra tem seus caminhos secretos. Está-me dar entendimento? O senhor lê o livro, eu leio o chão.
.
E, no fim, só um conselho. É que há perguntas que não podem ser dirigidas às pessoas, mas à vida. Pergunte à vida, senhor. Mas não a este lado da vida. Porque a vida não acaba do lado dos vivos. Vai para além, para o lado dos falecidos. Procura desse outro lado da vida, senhor.
Falei. Só falta fechar minha fala. Já que ninguém me deseja as boas felicidades eu mesmo me desejo: que eu viva mais que o pangolim que cai do céu sempre que chove.
Mia Couto [conto ‘Fala do feiticeiro Andorinho’]. do livro ‘O último voo do flamingo’. Companhia das Letras, 2005.
Mais visulizados
- A EXUMAÇÃO DE UM CÃO CHAMADO DUCK – Um conto de Octaviano Joba
- “Um dia quis ser rio para guardar a memória da terra” – A poesia de Cristina Siqueira
- “Cabritos à solta” – Um conto do moçambicano Octaviano Joba
- Sob Silêncio, o Reverso dos dias, o Eixo Ausente – A poesia de Vasco Cavalcante
- “Pequeno inventário das coisas que te pertencem” – A poesia e a arte de Jeannette Priolli