Paixão pela leitura!

“Dez pras dez” – Conto do premiado escritor Rafael Gallo

Ele desaba no sofá, exausto. Fecha os olhos, mas falta tão pouco para o horário no qual terá de acordar, o horário no qual terá de se apresentar pronto, que a ansiedade o impede de adormecer por completo.

Depois de tanto revirar para um lado e para o outro, pendulando também entre o sono e a vigília, levanta-se incerto se conseguiu sequer ter dormido. Lembra-se de imagens estranhas há pouco; talvez sonhos – o que serviria como comprovação de ter caído no sono – mas talvez ilusões hipnagógicas, a meio caminho da saída do despertar. Ou mera embriaguez.   

Vai à cozinha, pisa azulejos movediços. Apoia-se no batente da porta, acende a luz e olha para o relógio na parede. Os ponteiros alinhados, formando aquela única seta: agulha de uma bússola que aponta a noroeste. Sabe aonde essa indicação o leva, sempre o mesmo lugar, sempre faltando tão pouco para o momento de chegar lá. Ele esfrega os olhos diante do relógio na parede, quase descrente de estar de novo nessa marca, já a convocá-lo outra vez. Os dois ponteiros alinhados: dez pras dez.

Ainda que repita diariamente esse ciclo, ele é surpreendido pela urgência. Enfia os pés nos sapatos largados no chão, procura a chave sem encontrá-la, acaba deixando a porta aberta e sai às pressas. Atrasado, está sempre atrasado. Já na rua, seus olhos embaciados recebem o caleidoscópio das luzes da cidade. Precisa mandar fazer outros óculos, desde que as lentes do seu quebraram ficou nessa turvação. Talvez tenha chovido e o ar esteja úmido. Talvez não.  

Conseguirá chegar a tempo? Se tivesse capacidade de avaliar probabilidades nesse momento, concluiria que não. Seus cálculos sempre resultando em negativo. Portanto, corre como qualquer pessoa que nada sabe e precisa chegar a algum ponto. Detrás do portão da casa pela qual passa, salta um cachorro berrando latidos. Um cachorro descomunal, negro como a noite, ainda mais voraz do que ela. Apavorado na calçada, ele corre ainda mais.

Finalmente, chega ao lugar de destino. Parece vazio: nenhuma luz acesa, as janelas todas fechadas, o portão da frente trancado com corrente e cadeado. Nenhum aviso, nenhuma placa de orientação. Ele se pergunta o que pode ter acontecido; tenta chamar por alguém, nenhuma resposta. Grita, mas sua voz desaparece em meio ao ruído da cidade.

Decide esperar, quem sabe alguém apareça para ajudá-lo. Alguma pessoa mais preparada ou informada, que apresente solução a essa ausência generalizada. Senta-se na sarjeta, de frente para o acesso trancado. Pergunta-se que horas serão, perdeu o relógio de pulso há tempos e nunca mais o encontrou. Guia-se apenas pelo da parede na cozinha de onde mora, impossível de ser ver nesse momento.

Olhando distraído ao redor, descobre a garrafa encostada ao meio-fio, próxima à boca de um bueiro. Estende o braço e a alcança. Ainda está pela metade. Bebe vários goles do líquido que o aquece por dentro, que conforta-o de alguma maneira da angústia. O sono, então, envolve-o feito canção de ninar destilada. Ele deita na calçada. Apaga.

Acorda um tempo depois, dessa vez dormiu por certo. O rosto marcado pelo apoio no braço, o braço meio paralisado pelo peso da cabeça. Esfrega os olhos, continuam ébrios, mas veem: nada mudou, tudo ainda vazio. Resolve voltar para casa. Amanhã tenta de novo; está embriagado agora, nem seria bom se apresentar em tal estado. E perdeu a noção das horas. Recolhe a garrafa do chão, ainda sobrou um pouco da bebida. Caminha sob a noite que parece mais clara agora, mesmo sem luar.

A porta de casa está aberta, isso facilita. Na sala, ele deixa a garrafa em cima da mesa. Vai para o quarto. Tenta proporcionar final mais digno a seu sono. Encosta a porta, as cortinas já estão fechadas. Adormece na cama.

Só o estômago o faz acordar e, afinal, levantar. Vai para a cozinha, abre o armário desatento. Há um pacote de bolachas aberto, ele come sem pressa. Estão murchas. Curioso para saber que horas são, olha para o relógio na parede. Inacreditável, como pode ter passado tão rápido? Dormiu demais, a seta aponta. Já são dez pras dez.

Precisa correr, ou vai perder a hora mais uma vez. Saca a garrafa deixada sobre a mesa, enfia os sapatos nos pés. Por sorte, ainda está com a roupa de sair, não a trocou antes de deitar. A chave continua perdida, ele sai e deixa a porta aberta. Na rua, as luzes se misturam, o cachorro salta da mesma casa no mesmo ataque voraz, ele corre com o mesmo medo.

Encontra o lugar à semelhança da vez anterior: fechado por corrente e cadeado, nenhuma luz acesa, nenhuma janela aberta. Ninguém por perto. Sua frustração quase o faz atirar a garrafa contra a parede, num rompante. Mas o abatimento seguinte, que costuma sobrepujar outras ações dele, leva-o a apenas abaixar os braços e sentar-se à sarjeta. Solta, a garrafa rola pelo asfalto até encostar-se ao meio-fio, próxima à boca de um bueiro.

Dessa vez, não vai ficar aqui à espera, é inútil. Pode voltar para casa e telefonar, tentar descobrir o que está errado. Deve haver alguém responsável onde o telefone há de tocar, qualquer pessoa que saiba informá-lo, dar instruções. Será que ainda tem o número?

Chega em casa, vai até o armário, as gavetas estavam abertas. Mas não encontra o papel onde anotara, algum dia, o telefone. Procura no quarto, no cômodo restante – que nem função nem nome mais tem – e nada. Talvez tenha deixado preso à porta da geladeira, caso necessitasse em alguma ocasião, como agora necessita. Vai à cozinha, acende a luz. Olha para o relógio na parede. Dez pras dez.

Nesse horário, é melhor nem ligar e ir direto para lá. Precisa correr, talvez chegue a tempo caso se apresse. Enfia os pés nos sapatos, procura as chaves e não encontra. Não pode mais esperar, precisa sair agora. Deixa a porta aberta, atravessa as ruas escuras, o cachorro ainda mais escuro salta aos urros, o medo a esfriá-lo por dentro enquanto caminha em desespero calado. Chega ao seu destino: sem acesso, sem funcionamento, sem ninguém. Furioso, sacode o portão, tenta derrubá-lo; puxa a corrente para arrebentá-la. Seus esforços são inúteis. Tomba ao chão, exaurido. Chama, chama, e ninguém atende. 

Passa a mão pelo rosto, encontra lágrimas ou suor ou traços da chuva. Olha ao redor, descobre uma garrafa encostada ao meio-fio, próxima à boca de um bueiro. Está longe demais; queria beber, mas desiste. Enfia as mãos nos bolsos do casaco, talvez tenha outra coisa equivalente consigo. Encontra o papel. Deve ser o número de telefone que procurava, aproxima-o dos olhos. Não consegue ler, a grafia toda borrada, ou uma espécie de miopia potencializada. Desiste de tentar, precisa desistir.

Volta para casa, solta os sapatos no chão. A fadiga toma conta de seu corpo. Mais do que isso, apaga o que poderia ser chamado de seu espírito. Não tem forças para mais nada. Precisa dormir, ao menos, descansar um pouco de tudo isso. Sente-se péssimo, desorientado. E o que mais pode fazer, quando tudo passa mas a nada se chega? 

Ele desaba no sofá, exausto. Fecha os olhos, mas falta tão pouco para o horário no qual terá de acordar, o horário no qual terá de se apresentar pronto, que a ansiedade o impede de adormecer por completo. 

Autor

  • Rafael Gallo nasceu em São Paulo em 1981. É autor de Rebentar(Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2016, e de Réveillon e outros dias (Record, 2012), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2011/2012. Tem ainda diversos textos em antologias e coletâneas, incluindo publicações em países como França, Estados Unidos, Cuba, Equador e Moçambique.

Compartilhe nas redes sociais.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Também podes Ler

”As cento e onze picas” – A poesia em estado de choque. Por Celso de Alencar

CELSO DE ALENCAR nasceu (1949) em Fortaleza. Migrou para o estado do Pará e lá viveu nas cidades de Abaetetuba e Belém. Reside na cidade de São Paulo desde 1972.

“A profecia autocumprida” – por Gabriel García Márquez

Os filhos lhe perguntam o que aconteceu e ela lhes responde: — Não sei, mas amanheci com o pressentimento de que algo muito grave vai acontecer em nosso povoado.

“Os poemas do Vlado não se parecem com nada. São originalidade em estado puro.” A poesia de Vlado Lima

lutei 7 infinitas guerras no flanco esquerdo do velho soldado e só levei chumbo perdi todas as pelejas mas continuo cantando a canção dos partisans no lado B da resistência