Wislawa Szymborska — Três Poemas
Os três poemas de Wislawa Szymborska aqui reunidos, “Fim e Começo”, “Vietnã” e “Utopia”, condensam, com a clareza e a ironia que marcam a poesia da poeta polonesa, uma reflexão aguda sobre a condição humana diante da história, da guerra e do ideal de verdade.
Em “Fim e Começo”, Szymborska fala do trabalho silencioso e esquecido que vem depois das tragédias. O trabalho anônimo de reconstrução, limpeza e esquecimento que sucede à violência. O poema contrapõe o heroísmo das batalhas ao cotidiano dos que, sem glória, recolhem os restos do desastre.
Em “Vietnã”, a voz poética dá forma ao absurdo da guerra através de um diálogo truncado, onde o “não sei” repetido parece o eco da desumanização e da perda de identidade. A mulher anônima, reduzida ao instinto de sobrevivência, encarna a vítima universal dos conflitos, sem nome, sem pátria, mas ainda mãe.
Por fim, “Utopia” imagina uma ilha perfeita, o lugar da razão absoluta e da certeza, onde não há espaço para a dúvida ou a inquietude. Contudo, a perfeição se revela estéril: ninguém permanece nela. O poema expõe, com ironia sutil, a solidão dos sistemas que acreditam possuir todas as respostas.
Conjuntamente, esses poemas constroem uma visão crítica e comovente da humanidade. Suas ruínas, seus silêncios e seus sonhos de sentido revelam a força de uma poesia lúcida, que ainda acredita na ternura e no espanto.
FIM E COMEÇO
Depois de cada guerra
Depois de cada guerra
alguém tem que fazer a faxina.
Colocar uma certa ordem
que afinal não se faz sozinha.
Alguém tem que jogar o entulho
para o lado da estrada
para que possam passar
os carros carregando os corpos.
Alguém tem que se atolar
no lodo e nas cinzas
em molas de sofás
em cacos de vidro
e em trapos ensanguentados.
Alguém tem que arrastar a viga
para apoiar a parede,
pôr a porta nos caixilhos,
envidraçar a janela.
A cena não rende foto
e leva anos.
E todas as câmeras já debandaram
para outra guerra.
As pontes têm que ser refeitas,
e também as estações.
De tanto arregaçá-las,
as mangas ficarão em farrapos.
Alguém de vassoura na mão
ainda recorda como foi.
Alguém escuta
meneando a cabeça que se safou.
Mas ao seu redor
já começam a rondar
os que acham tudo muito chato.
Às vezes alguém desenterra
de sob um arbusto
velhos argumentos enferrujados
e os arrasta para o lixão.
Os que sabiam
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles
que pouco sabem.
Ou menos que pouco.
E por fim nada mais que nada.
Na relva que cobriu
as causas e os efeitos
alguém deve se deitar
com um capim entre os dentes
e namorar as nuvens.
VIETNÃ
Mulher, como você se chama? — Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? — Não sei.
Para que cavou uma toca na terra? — Não sei.
Desde quando está aqui escondida? — Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? — Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? — Não sei.
De que lado você está? — Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. — Não sei.
Tua aldeia ainda existe? — Não sei.
Esses são teus filhos? — São.
UTOPIA
Ilha onde tudo se esclarece.
Aqui se pode pisar no sólido solo das provas.
Não há estradas senão as de chegada.
Os arbustos até vergam sob o peso das respostas.
Cresce aqui a árvore da Suposição Justa
de galhos desenredados desde antanho.
A árvore do Entendimento, fascinantemente simples
junto à fonte que se chama Ah, Então É Isso.
Quanto mais denso o bosque, mais larga a vista
do Vale da Evidência.
Se há alguma dúvida, o vento a dispersa.
O eco toma a palavra sem ser chamado
e de bom grado desvenda os segredos dos mundos.
Do lado direito uma caverna onde mora o sentido.
Do lado esquerdo o lago da Convicção Profunda.
A verdade surge do fundo e suave vem à tona.
Domina o vale a Inabalável Certeza.
Do seu cume se descortina a Essência das Coisas.
Apesar dos encantos a ilha é deserta
e as pegadas miúdas vistas ao longo das praias
se voltam sem exceção para o mar.
Como se daqui só se saísse
e sem voltar se submergisse nas profundezas.
— Wislawa Szymborska
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