– Tu sabe, meu irmão, eu jamais negaria qualquer coisa que fosse importante para tua sobrevivência ou de qualquer morador aqui do Lago Verde. Mas o que eu quero é que tu lembre da luta que deu para fazer essa canoa. Quero que tu sinta, novamente, a dor da peleja de mais de três dias para tirar o último tronco de itaúba das bandas do Ramal do Coatá. Subir barrancos carregando tanto peso para descer o Igarapé dos Macacos até o Lago Verde. E a insistência? E os pedidos? Sempre em voz baixa, humilhada, para o Seu Calandrinho fatiar a tora? Mas tu vai na nossa canoa, meu irmão! Ninguém é vencedor de uma guerra sozinho, a vitória dessa luta também é tua. Tu tava lá comigo! Quem sou eu pra negar sentença na cabeça de homem feito como tú! Mas porque Rio Arapiuns? Quatro horas de travessia em banzeiro traiçoeiro, se aqui, no Lago Verde tem tucunaré facinho? Pra que ir para o outro lado do Tapajós, tão longe, que daqui não se vê? Se na Ponta do Cururu tem peixe de todo jeito?
– Andirá mulher! Tamo na dobra do quinto dia e nada do meu irmão! Não quero ser escravo dessa falsa esperança, ficar acreditando que ele um dia vai voltar. Se eu não me espertar, se eu não sair dessa tristeza para seguir, nesse rio, o rastro do meu irmão e da minha canoa, esse teu Deus vai ficar me enganando todas as horas de todos dias… Cada canoa, de longe, vai parecer igualzinha a minha e toda fala e riso no silêncio, vai parecer que é o meu irmão voltando na nossa canoa, do nada… Não quero carregar, pro resto da minha vida, uma esperança que vai diminuindo… diminuindo… levando junto a minha alegria que já é tão pouca…
– Andirá! Eu nem queria te dizer isso… mas tu também é culpada! Tanto tempo vivi, sem precisar de Deus! E assim, bem vivia. E tu me levaste pra aprender que não se deve ter apego a bens materiais. E agora, nessa agonia, eu só queria meu irmão de volta e, se der, e Deus, assim permitir, queria também, minha canoa Fé em Deus, serena, aqui nesse lago.
***
fotografia de Eduardo Serique
Autor
-
Na Vila Curuai do Lago Grande, Distrito de Santarém, nasci em 1963, com o nome de Marco Aurélio. Meus pais, nascidos e moradores de Santarém, por conta de compromissos profissionais, me tiveram dentro de um barco na Vila Curuai (mentira quase verdade como tudo que escrevo). Meus irmãos, nascidos em Santarém, diziam - tu nasceu no Sítio! - Um demérito que se tornou mérito aos 12 anos quando eu visitei a Vila Curuai e me vi em um universo caboclo, quase indígena. Um mundo cheio de histórias e fotografias pra todo lado - tornei-me fotógrafo. Já adulto, em Belém, assumi o nome de Marco Buro, apelido de infância. Na UFPA, me formei em Arte Educação, virei Professor, desenhista, contador de histórias e escritor. Mas é a fotografia, como poesia, que me revela.
Muito legal mano , parabéns