“PESSOA DOUTRA MARGEM” – A poesia de Flávio Viegas Amoreira

PESSOA DOUTRA MARGEM

I – Muito além da melancolia das alvoradas
Zênite: tudo se esvai no ímpeto de acordar pela sombra os recifes
Despertar dum sonho nu
Espraio me dum cais etéreo
Súbito solto a recordação
Vagando até o molhe do espírito liberto

II – Eu largado ao meu outro marujo
Chega-me ainda que amante da cidade!
Sinto arrefecidos meus medos
Todas peias d´antanho romper
Largar! Não saber-se preso outra fé
Que não a no teu corpo
Também marujo
Onde esteio a laçar as nuvens
Por teus braços hélices
Precipício
Âncora

III – Ah! o grande porto!
Emprenhado de suspiros !
Imenso porto rasgando-se
Nas tardes escarlates !
E quais outros
Portos nos esperam?
Amantes dourados

IV – Dessa mesma coragem
Que vos falo sem mais o temor
Acumulado de outras eras
Sozinho no porto ainda
Noturno nesse limiar de verão
Vislumbro longe um veleiro lento
Melancólico paquete
E ventam em mim suas velas
De todo lado do mar algum modo
Material do desejo difuso

V – E o que é o vento ?
Praiano siroco versado em barcos
Ancoradouro em escadarias toscas
Enquanto teu navio não parte
Gaivotas vagando por cerejeiras espaciais
E a chuva perdeu a asa rubra
Interminável duração estética
Charada imagética

VI – Mesma luz sobre luz
Nos escondíamos amadrugados de azul
Cobalto pelo ar
Sereno aroma
Ardósia
Envolvido de lavanda

VII – Meus olhos postos
No teu silêncio
Insidiosos
Insinuantes
Em que porta bater primeiro
Amor súplice?
Teu sorriso pêssego
Carne irrefletida
Futuro mais que perfeito
Anjo de Tânger

VIII – Quem ama não desfalece
ao intimorato mergulho da superfície
sob a maciez gris das ondas
entrando vagar seguro
no reino sem palavras
e tantos significados navegados

IX – Sem o véu da duvida
rasga-se sobre a proa
empunhando a letra de sangue
desembaraçado o rumo das águas

X – Desatai-me passivo a todos sabores
Afoito do bafejo de todas tormentas
e bem aventuranças
vergado pelo tombadilho
soberano do meu sexo
no castelo de popa
sabedor da matemática inspirada das ondas
aritmética precisa dos teus músculos
e nenhum ranço adjetivo
total substrato em algum canto do tempo
você me toca da forma que ainda exista

XI – Ao termo dum dia a comunhão
de beleza e despedida
voo de mergulhão em dobre
magia insuspeita
anoitece despudorada a Terra
beta / gamma / delta
o que de real é impermanece

XII – tento ao céu e mar que roço
tocar por nebulosa
interiormente só que a floração constelada
por tua cor verdadeira do mundo
sem olhar as batalhas de fora
ser um herói dentro de mim espelhado
e talvez tanta água aos poucos
confunda com minhas fontes
no zênite
meu rio é pequeno
mas tem afluente lá na lua

XIII – Andei silencioso
entre a crispação olhando o mundo ao redor
uma nuvem dá-me sorriso íntimo
meigo arco-íris encolhe-se a passagem dum sanhaço
sigo com trapos rotos sem modulação de rota
galopo troto estouro e ainda vibro o raciocínio da nave
pela sucessão de tormentas e bem aventuranças
inexpugnável urro!
enquanto piratam-me o nexo
corsários
vazando os poros

XIV – Rasgai-me a pele o sol bravio
tal esponja voluta por tubarões lunares
embrenho-me pelo mar grosso
puta de todos os lupanares
desvirginado por vossos corpos de estiva e salitre
navegando do alto das torres lunares
criando epopéias

XV – fudei-me imaginativos
violai-me intrépidos embarcados
turbilhonando pavores cediços
eu que sinto o ar das coisas todas
em minhas ancas arrombadiças
de todos teus arrojos!

XVI – Ansiedades de minhas cavidades úmidas
anseios torpes forjam-me corajoso ao adro
dos faróis lapas lajedos
esfrego-me por tuas gretas
tocando insano o formato das tuas partes ignotas
as tatuagens em teus bíceps de laca
carreando barcos bêbados
entre o caroço e a pluma
a superfície das ondinas em flor
turbilhonadas
montante doutras margens
um pinheiro despido dos galhos
touceiros flutuantes
escaler barlavento

XVII – na popa cem jardas avante
nosso idílio da carne
o rastro de vitória-régia
soçobrando nas idéias de infante
minha cama de menino
os pés traçando arcos pela areia
arfando de ânsia
a noite me puxar pelos cabelos
marinho meu primeiro berço

XVIII – A lua míngua orvalha
E saber nunca ter sido feliz noutro corpo
Quisera ser adulto a gozar as delícias da madureza
Sem saber que inocente era inteiro sem desejo além do que tocava
Aquela infância imaginada eterno desterro
Passou feito garoa sem remorso
E dela só a ternura que esvai longínqua
Um mergulhão na tarde fria
E onde meu brinquedo agora de fazer espumas?
Faz me inerte olhar tudo nessa distância
E pensar para que ter sido se tudo agora solto

XIX – Desilusão o amor negado
E eis que vou até a ponta duma praia longa
Ver esses navios de tanta pompa
Que pouco se dão também de amores ao porto
Lançados a outro cais para novos usos e desprezos
Tanto quanto me enredo de corpos intocados
Músculos que me esnobam os talentos
De percorrê-los
Recuados

XX – Recolho eu mesmo meu rebanho
As calendas minha sorte
Talvez fulgor ainda nesse ancoradouro
Caiba alegre fado
Dizer não sinta
Sem ventura
A direção do verso

XXI – A nuvem de novo
Água de asas
Esse fascínio de sol e mar
Que dá –me suprema lucidez pela poesia
No instante mágicoda passagem da luz
Sobre conteiners cabos vagões
O cais dorme
A eternidade é aos domingos
Quando a carga seca
Sem rumor algum a estiva

XXII – Quando solto-me
Pirata e prático
Desgarrado de mim
Nas garras do estuário célere

XXIII – Pouco importa as poderosas belonaves
que cercam tua entrada
só que está longe agora me lava o espírito
há o comércio
as novas especiarias de silício
a profusão de algoritmos
mas o que me diz inteiro
é a imprecisão do sonho
sem aparas
o que encobre os telhados
o casario
a firme propensão a evasão
sem romper o círculo altivo

XXIV – da mirada de toda a barra
as promessas que a baía
narra
e que nada se aplique a razão comum
a nenhuma plausibilidade!
o mar sem medidas
único a que me subjugo

XXV – Venho eu rente
Dissoluto
Defronte ao cais onde proclamas
A fraternidade dos raros
Eremitas do desejo
Solitários do amor desviado
Ébrios de recato
Eia! Que ecôo o teu brado!

XXVI – Um semicírculo de ondas
Eu só com meu passado e minhas covardias

XXVII – Só ver o mar
XXVIII – Seus arames de partida
XXIX – A ponta da praia na hora sagrada
XXX – Crepuscular a cidade
XXXI – Em langor de noite
XXXII – Somos duas putas
XXXIII – Sem donaires
XXXIV – Nem a segurança das machezas
XXXV – Curtidos no álcool da melancolia
XXXVI – Tu em Lisboa
XXXVII – eu em Santos
XXXVIII – talvez nosso comum em Alexandria
XXXIX – mesmas ancas femininas
XL – mesmo sexo insaciável
XLI – de novas aventuras
XLII – em busca dum só amor
XLIII – que satisfaça
XXVII- Romper! Romper essa névoa
Insiste densa toldar minha vontade
Atravessar esse tênue véu
Refletindo o branco dos ossos
Quero salvar-me
Descobrindo sem antolho
Nem meta
Um presente infinito!

***

Autor

  • Flávio Viegas Amoreira, nascido em Santos em 1965, é escritor, poeta, contista, romancista, dramaturgo e jornalista. Ao longo de sua carreira, foi parceiro estético de importantes compositores, como Gilberto Mendes e Livio Tragtenberg, com quem desenvolveu projetos de integração entre literatura e música. Em 2022, por ocasião do centenário de Gilberto Mendes, o escritor publicou uma biografia em homenagem ao músico e maestro santista. Ativo como agitador cultural, desenvolve projetos em São Paulo, Rio de Janeiro e no Litoral Paulista, promovendo discussões sobre artes de vanguarda, saraus poéticos e oficinas de criação literária. Sua produção literária inclui 14 livros, entre eles MaraltoA Biblioteca SubmergidaContogramasEscorbuto, Cantos da CostaEdoardo, o Ele de NósOceano CaisDesaforismos e Pessoa doutra margem. Amoreira também participou de diversas antologias de poesia e conto, incluindo Geração Zero Zero, que reúne escritores inovadores lançados na primeira década do século XXI, organizada pelo crítico Nelson de Oliveira.[5] No teatro, além de atuar como dramaturgo, concedeu uma polêmica entrevista ao diretor Antônio Abujamra no programa Provocações, da TV Cultura, onde discutiu temas relevantes para a literatura e a cultura brasileira. Seu engajamento nas universidades, nas revistas, nas redes sociais e na criação de arte digital destaca-se, reafirmando-o como uma das figuras mais dinâmicas da Novíssima Literatura Brasileira. Flávio Viegas Amoreira é associado ao movimento cultural santista que surgiu no final dos anos 70 e início dos anos 80, período marcado por desafios na cena artística e política pós-abertura do regime militar. Seu trabalho é caracterizado por uma profunda ligação com a geografia de Santos, cidade que inspira sua poesia e sua crítica social, frequentemente permeada por metáforas marítimas e um olhar atento às transformações culturais. Ao longo de sua carreira, Amoreira também atuou como professor em oficinas literárias. Em 2024, Flávio Viegas Amoreira foi eleito para a Academia Santista de Letras (ASL), ocupando a cadeira 25, cujo patrono é o poeta Vicente de Carvalho, consolidando sua influência no cenário literário. Flavio Viegas Amoreira tem se dedicado ao resgate de artistas ligados à cidade de Santos, destacando sua importância na literatura brasileira. Em 2024, organizou Vicente de Carvalho redescoberto (Editora Costelas Felinas), publicado no centenário da morte do poeta. Atualmente, Flávio Viegas Amoreira é colunista do jornal santista A Tribuna.

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