
simetrias dissonantes
em gestos imperceptíveis, a mímica do corpo é escultura móvel, vazio da temporalidade que incita o mundo: desvio do fio que costura na tela o filtro de luz – aparência matinal de um deus sonâmbulo, espectro insone da existência que, apenas aos bardos, se revela obscura tez da tempestade, o dilúvio de uma lágrima e a ferida que não evanesce – cicatriz do verbo presente na dessimétrica dança do espaço, cósmica sedução na borda circular da fissura.
urbanidade
I dois espantalhos vigiam o imprevisível da noite: algo estranho a crescer. nada que não se encontre no íntimo de um acidente – requebro de árvores, ruído de pedras, página da herança perdida no zinabre de uma escultura que se tornou sucata. II o tempo encrespa faces silenciosas – sortilégio da última folha do calendário – mundano trajeto que termina num cenário obtuso: edifícios submersos na fumaça abandonada por veículos no enigma das esquinas – lendas que confiam às ruas pegadas de um animal incógnito. III dentro da metrópole uma outra invisível que muda e jamais se revela na luminosa arqueologia das construções históricas: cicatrizes do corpo feito memória, território de confusa geografia.
factual
nada pior do que a certeza arrisco um olho ao risco do espaço desabitado astronave rompendo o código do corpo que se ampara à borda do abismo ensaio a aspereza o feito intraduzível da ave que se lança sobre o tempo dos juízos obscuros (a tirania do voo) e sepulta a sina o dado o lance a luz necessária para irradiar acima da redondilha fóssil o rendilhado tecido do acaso (finas tessituras abertas à dúvida sem o fascínio das algemas e do encanto à liberdade póstuma) eis o papel em branco a mudez de passagem fria nudez diante do vago que forja a eternidade do grito
o que a vida encena
o murmúrio terminou sem o eco acústico das paredes mofadas. na penumbra do palco a trama da noite espreita, enquanto o silêncio envolve a plateia. não há protagonismo nas cenas imprevistas deste drama obstinado. quando desce o pano tudo que o escuro revela são funduras de um céu sem estrelas, geadas e a surdez do universo. os jovens estão perplexos. os velhos, perdidos atrás dos óculos. todos querem se afastar do tempo, mas o tempo já estava lá, antes de saberem que toda estrada tem um fim e que o último passo pode alcançar o abismo.
tempos verbais
I a voz que falta ao mundo por trás da ficção: ouço um soluço vindo antes do vazio das florestas extintas e angústias declaradas epílogo feito assombro do passado dor inconfessa que ora se lança ao vento tardio quando janelas se fecham à paisagem deserta II a dor de sentir sem dizer – lágrimas precipitadas no meio da estação ressoando tremores no intervalo de chuva e sol a luz dissoluta descortina a face oculta: um poema além do verbo que retrate o mundo que nos falta um poema sob janelas serenadas – brilho que cruza a imagem dispersa na retina: a escansão do verso infenso ao silêncio. III quem à janela rompe sem rumo esse nó da traqueia? na busca de remotos avessos as impressões de início quando o verso é adágio: íntimo respiro da terra que cobre de palavras o chão de mudas cicatrizes.
falta uma letra apenas para desvendar teu nome
nenhuma resposta, apenas a imagem da cordilheira coberta de neve sobre o fundo azul impressionista, e a citação empírica do trajeto da escalada: um branco típico na cabeça do Aconcágua, com destinos solitários e íntegra paisagem de pedras e capins. postal sem remetente, tuas palavras denunciaram o medo de se perder esquecida na planície abandonada ou entre os fantasmas alpinistas de almas condenadas ao frio. eu aqui continuo intraduzível e perpasso a encruzilhada como quem salta estações à vertente mágica das flores. devo confessar, teu perfume mistura-se ao infindável silêncio, desde a noite de ontem e o dia ressurgido feito rascunho de poema, verso a verso, a colar no chão o vaso em pedaços.
a versatilidade do molusco
“o invisível aspira a forma” Ana Hatherly I. o asfalto molhado repele a luz feito um lago profundo, no esquecido silêncio dos peixes. a noite não merece estrada, apenas arrependimentos. II. alguns minutos a mais e o fato comprovado no funil da pista: carros tombados e alguns corpos cobertos em plástico. luzes vermelhas piscando desesperadamente à lenta e curiosa fila que beira a ilegibilidade – olhos estendidos ao ponto de letra. III. o tempo desdobra, mimetiza o espaço e desvenda o sentido do gesto – enigma da linguagem a conquistar realidade: dissemelhança pervertida do mundo que não se esgota à margem do abismo. IV. um verso escapa da língua. sentidos se perdem no percurso da letra. a imagem é realidade própria da textura do verbo – experiências espaciais, movimento de signos até o indizível da efígie escritura que jamais se finda. V. a manhã não merece consolo, talvez arrependimentos.
reduto de Arles
girassóis forram o chão do velho feudo escravos-modelo do vaso amarelo de Van Gogh celebram com vitalidade o símbolo áureo em plena planície giram insistentemente como distantes planetas ao redor do sol (o sol estruge e afasta a noite para longe das sombras)
molduras
a tarde exposta em quadros – impressões transparentes das retinas de aço (lâminas que recortam a paisagem intransponível.) o ínfero sol do ocaso a reluzir sua face sob rubro vestígio que insola o dia trai a boca que descreve a clareza do verso entre o ventre do espaço e os dentes do tempo roendo discreta engrenagem.
Memorial
I À margem do precipício, confirmo a impostura da paisagem. Eco de estranha logia. Sinfonia que desbrota: sementes em fuga. Árvores caducas. Insetos ametábolos. Aves de arribação. Chão aliciando o concreto, enquanto a pedra testemunha partidas. II Na mistura de rugas e dores escondo minha intimidade: o corpo é arrimo do tempo. Obscuro paradoxo: contar o tempo que resta e pautar a vida nos acordes do inacessível. Apenas quem percebe o instante entende a intenção da pedra. III Reconheço a sombra quando vejo. A noite é, agora, a única testemunha do poema. (Iluminar o mundo com versos, velas e cigarros.) IV Há um momento em que ficamos sós com nossos vícios. Em silêncio, a noite desaba fria e indiferente sobre todas as letras. O poema é, agora, a única luz irredutível dos versos, na indecisão da lua. V (Num dia raro, imagens prováveis do nada bastam para que a saudade suceda o primeiro vazio da manhã.) VI Impressões me vestem da natureza em sua presumida ruína. Vestíbulo da dor e da culpa atravessam o remoto na rota de mórbida translação. VII Partilhar o impartilhável: difícil presumir quantos momentos, mentiras e tragédias estão guardadas na memória. VIII Ela escrevia meu nome em cada frase presa no verso de um postal: era sua maneira de dizer o indizível tão longe dos olhos, tão próximo do fim.
Autor
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SIDNEI OLIVIO – natural de São José do Rio Preto, SP, biólogo de formação e poeta por convicção. É autor dos livros “Zoopoesia”, 1999 (em coautoria); “Poesia Animal”, 2000 (em coautoria); “Mutações”, 2002 (em coautoria); “Concretos & Abstratos”, 2003; “O limite da razão”, 2011; “Uni-verso: a natureza da poesia e a poesia da natureza”, 2012; “A transgressão da palavra”, 2013; “As sete faces da cidade”, 2014; “O que desmanchamos em pedaços”, 2017; “A visão poética do abismo”, 2018; “Poesia Invertebral”, 2019 (e-book bilingue em coautoria); “Poesia é um lugar que não se revela”, 2021; “Tratado das Significações Originais”, 2022; “signos de passagem”, 2023; “Falta apenas uma letra para desvendar teu nome”, 2025. Tem ainda participação em diversas coletâneas, plaquetes, revistas, sites de literatura e e-books.