E se as palavras pudessem te abraçar? O segredo das imagens que fazem a poesia respirar
Já aconteceu de você ler um verso e, de repente, sentir um frio na espinha? Ou o coração acelerar como se estivesse diante de algo real, mesmo que aquilo só exista nas entrelinhas de um poema? Isso não é coincidência. É o poder das imagens poéticas: Pequenos milagres feitos de palavras que nos fazem ver, sentir, lembrar… e por que não dizer, até renascer.
A poesia não precisa de efeitos especiais. Ela transforma o cotidiano em encantamento com o que tem de mais sofisticado, a simplicidade: Uma folha caída, um copo de água, o silêncio entre duas batidas do coração. E quem domina essa arte, de fazer o invisível palpável, são os poetas e as poetas, cada um com seu jeito de olhar o mundo e traduzi-lo em imagens que se eternizam.
A imagem que nasce do corpo, da alma e do mundo
Pode ser que haja quem trate apoesia como um exercício cerebral, distante do corpo. Mas poetas e poetas, cada vez mais, trouxeram de volta a carne, o desejo, o sangue, o trabalho, o mistério, tudo como matéria poética legítima.
Adélia Prado, por exemplo, escreve com uma simplicidade que parece oração:
Com licença poética
vou me chamar de Adélia
e vou dizer que sou santa
e que sou pecadora. — Adélia Prado
Nesses versos, há uma imagem poderosa: A mulher que se permite ser inteira. Santa e pecadora, mãe e amante, humana e divina.
Já Fernando Pessoa, por meio de seu heterônimo Alberto Caeiro, nos convida a uma espécie de inocência radical diante do mundo:
O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que eu não o vejo? — Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)
Quando o mundo cabe num gesto
O filósofo Gaston Bachelard tinha razão ao dizer que a imagem poética é um “começo absoluto”. Ela não repete o mundo, o recria. E às vezes, basta um gesto mínimo para isso acontecer.
Veja Hilda Hilst, que escreveu com fúria e ternura:
Ó meu amor, meu ódio, minha fome,
minha sede, minha sede! — Hilda Hilst
A repetição de “minha sede” não é redundância, ou erro. É uma imagem que cresce dentro da gente, como sede de verdade física, espiritual, inextinguível.
Nosso grande poeta Carlos Drummond de Andrade nos entrega uma cena aparentemente simples, mas carregada de ritmo e cor:
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar olhos verdes entre. — Carlos Drummond de Andrade
É uma imagem que não apenas vemos, mas sentimos. O calor, o cheiro, a calma de um lugar onde o tempo parece mais lento.
A poesia que vê o que os olhos não veem
Muitas vezes, a imagem poética surge justamente do que não está lá. Do vazio. Do silêncio. Da ausência.
Ana Cristina Cesar, poeta carioca dos anos 1980, escreveu com uma voz íntima, quase sussurrada:
Eu não sou triste não
sou apenas um pouco cansada de tudo. — Ana Cristina Cesar
A imagem aqui é de uma mulher que carrega o mundo nas costas, mas fala baixinho, como se não quisesse incomodar. E, ainda assim, sua voz ecoa entre nós.
Já Manuel Bandeira, com sua doce melancolia, criou um dos lugares mais desejados da literatura brasileira:
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei… — Manuel Bandeira
Pasárgada não existe no mapa. Existe no coração de quem sonha com um lugar onde tudo é possível; onde o amor, a liberdade e a alegria não são privilégios, são prazeres e direitos.
Imagens que curam, que denunciam, que resistem
A poesia também habita a cozinha, o barraco, a rua, o exílio. Carolina Maria de Jesus, escrevendo do barraco em que vivia na favela do Canindé, transformou o cotidiano em literatura crua e necessária:
O meu dia nasce com o canto do galo e com o choro das crianças que têm fome. — Carolina Maria de Jesus
Essa imagem — o canto do galo e o choro da fome mostra como a poesia pode ser testemunho. Não há beleza idealizada, mas uma verdade que, justamente por isso, nos toca.
E Conceição Evaristo, com sua “escrevivência”, nos lembra que a imagem poética também é resistência:
Minhas mãos não são apenas mãos.
São memórias de quem colheu algodão,
lavou roupa alheia,
amassou pão com dor nos dedos. — Conceição Evaristo
Enquanto isso, João Cabral de Melo Neto usava a seca do Nordeste não para lamentar, mas para esculpir versos com a dureza da pedra:
O cão sem plumas, magro,
de costelas à mostra… — João Cabral de Melo Neto
Sua imagem não apela à piedade, exige olhar. E, ao olhar, enxergar.
A esperança com penas
Nem toda imagem precisa ser trágica para ser profunda. Às vezes, ela é leve como um passarinho.
Emily Dickinson, nos Estados Unidos do século XIX, fechada em seu quarto, via mais do que muitos viajantes:
Hope is the thing with feathers
That perches in the soul… — Emily Dickinson
Transformar a esperança em um passarinho frágil, mas persistente, é um dos maiores feitos da imaginação poética.
E Mário Quintana, com seu jeito de menino sábio, escreveu:
A poesia é a síntese do mundo.
Por isso, às vezes, um poema inteiro
cabe numa só palavra. — Mário Quintana
Como escreveu Rainer Maria Rilke:
“Se sua vida cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse; acuse a si mesmo por não ser poeta suficiente para evocar suas riquezas.”
Talvez a riqueza esteja aí, na luz da janela ao entardecer, no rio que corre na sua aldeia, no trapiche, no cais, no cheiro do pão quente, no olhar de alguém que você ama. Basta saber transformá-la em imagem. E, quem sabe, em poesia.
Infância
Meu Deus, que estais pendente de um madeiro,
em cuja lei protesto de viver,
em cuja santa lei hei de morrer
e não sei como, ainda, não estou inteiro…
Mas, ó meu Deus, por que é que eu me lembro
de uma casa de janelas abertas,
onde o sol punha laivos de ouro nas cortinas,
e o vento trazia cheiro de laranjeiras?
Lembro-me de um pátio, de um tanque,
de uma escada de pedra,
de um corredor escuro
onde eu corria assustada…
Lembro-me de uma voz que me chamava,
e eu não queria ir,
porque estava brincando com as sombras
que o sol fazia no chão.
Lembro-me… lembro-me…
Tanta coisa que já não existe!
Mas, na memória, tudo permanece
com a mesma luz de então.
E eu, que sou do tempo e da distância,
fico triste de ser tão passageira…
Mas agradeço, Senhor, a lembrança
dessa infância que nunca foi minha.
— Cecília Meireles
