Acesso ou cadastro Autor(a)

“Moçalinda e seus maridos” – Uma história de África por Jeremias A. Muquito

Moçalinda e seus maridos

Contada por Jeremias A. Muquito — versão para Ver-O-Poema

Pinturas do artista João Timane Em uma terra banhada pelo Índico, vive uma mulher chamada Moçalinda. O “Moça” de seu nome é uma homenagem a um velho amigo de seu avô, Mussa, um árabe que outrora visitara a sua casa na Ilha, encantando a família com histórias de mundos distantes e visões de prosperidade. O “linda” reflete sua beleza estonteante: olhos que brilham como o mar, força dos rios que cortam a savana, e a riqueza de sua terra, com solos férteis, pedras reluzentes, gás, petróleo e florestas de madeiras raras.

Moçalinda, apesar de sua beleza e riqueza, vive uma sina: seus maridos, embora diferentes em nome, parecem cortados do mesmo pano, sempre prometendo o céu, mas entregando apenas poeira.

No passado, fora casada com Portulino, um homem de modos requintados, mas de coração frio. Ele chegara do Este em um navio, prometendo uma grande casa com jardins floridos e celeiros fartos, além de pontes, estradas e escolas. Tudo, porém, era um véu para encobrir seus interesses pessoais. Na prática, ele enchia os próprios cofres com os tesouros de Moçalinda e os levava para além-mar. Enquanto isso, ela, forçada, trabalhava dia e noite: plantando, colhendo, carregando água. Portulino limitava-se a escrever cartas para amigos de outras terras, vangloriando-se de sua “esposa fiel”.

Marcas de ferro sulcavam sua terra. Humilhada, Moçalinda era estrangeira em sua própria casa, considerada inferior aos que vinham de além dos oceanos, apenas porque seu solo, embora fértil, era negro. Cansada, ela sonhava com liberdade. Foi então que, numa manhã de 1962, surgiu Fraudelimo, um filho da terra, com discurso ardente. Ele jurou libertá-la de Portulino, prometendo um futuro onde ela seria dona de si mesma.

— Vou dar-te a casa que mereces, Moçalinda! — exclamava, de punho erguido. — Nada de exploradores! Vamos construir juntos, com nossas próprias mãos!

Após anos de luta, em meados de 1975, ele finalmente expulsou Portulino, que partiu derrotado. Cheia de esperança, Moçalinda aceitou Fraudelimo como marido e celebrou a tão sonhada independência.

Os primeiros dias foram de festa. Ele organizava banquetes em que todos cantavam hinos de liberdade. Moçalinda acreditava que, enfim, teria uma casa sólida, com paredes firmes e telhado sem goteiras. Fraudelimo discursava inflamado. Mas o tempo passou, e a casa permaneceu a mesma: chão de terra batida, telhado furado.

Moçalinda logo percebeu que seu novo marido, apesar da retórica, agia como o antigo.

Por volta de 1977, das florestas surgiu Renamino, um guerreiro calejado, com cicatrizes que narravam histórias de resistências e um coração ardendo por justiça e poder. Ele não se contentava em ver Fraudelimo como o único marido de Moçalinda; também queria algum pedaço dela e, por isso, jurou libertá-la. Reuniu aliados, homens e mulheres das aldeias, forjou armas na sombra e preparou uma revolta. Contudo, seu levante cresceu como um rio em cheia, cortando a própria Moçalinda, e o sangue manchava o solo que ambos chamavam de lar.

Fraudelimo aproximou-se de Renamino com uma bandeira branca:
— Por que tanta matança, meu irmão? Que os filhos de Moçalinda decidam quem deve ser o marido dela daqui para a frente. Eleições livres, justas e transparentes, que tal?

Renamino, buscando evitar mais mortes e acreditando ter alcançado seus objectivos, aceitou.

Fraudelimo conhecia como ninguém os caminhos do poder. Enquanto Renamino pregava esperança, ele manipulava urnas: boletins de voto desapareciam ou apareciam, conforme seus desejos. E os votos cantavam sempre a mesma canção, a da vitória de Fraudelimo. A assembleia, que deveria ser a voz dos filhos de Moçalinda, tornou-se um teatro com Fraudelimo como único protagonista.

Com o poder assegurado, ele abriu as portas a forasteiros de sorrisos tortos e olhos gulosos que esvaziam os tesouros de Moçalinda e, em troca de promessas de apoio, enchem apenas os bolsos de Fraudelimo.

— Tens que ser o eterno marido de Moçalinda!”, exclamam, certos de que, com ele como marido, seus lucros estão garantidos, e um novo homem pode estragar a festa e isso não pode acontecer.

Não importa o que ocorre, os amigos de Fraudelimo sempre dizem: ele é, de forma livre, justa e transparente, o legítimo marido da Moçalinda.

Outros homens apareceram ao longo dos anos: o jovem Idealisto, que falava de igualdade, e o sábio Reformino, com planos detalhados. Mas Fraudelimo não admite concorrência. Por se considerar o “Libertador”, julga-se no direito de fazer e desfazer com Moçalinda. Alguns críticos são cooptados em seus banquetes e param de lutar; os que resistem desaparecem sem deixar rastros.

E Moçalinda, ainda com a casa de chão de terra batida, telhado furado e cofres cada vez mais vazios, continua a perguntar-se se um dia será livre e dona do próprio destino.

— Jeremias A. Muquito

Postagens mais visualizadas

Foto do autor

Jeremias A. Muquito, pseudônimo de Jermias António Moquito, nasceu em 8 de setembro de 1992, é natural de Angoche, na província de Nampula, Moçambique. Iniciou sua paixão pela escrita criando webnovelas em blogs de internet, explorando desde cedo o poder da narrativa para envolver leitores. Em 2025, foi finalista do Prêmio Literário Carlos Morgado com o conto “Abubakar, o rapaz do olhar conhecido”. É também um dos autores da antologia Novas Vozes Novas Estórias, editada e chancelada pela Fundação Carlos Morgado, consolidando-se como uma das novas vozes da literatura moçambicana contemporânea.

Compartilhe esse post!

4.3 4 votos
Classificação do artigo
Inscrever-se
Notificar de
guest
1 Comentário
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Octaviano Joba

Saudações, Geremias! Uma narrativa interessante. . . Muita criatividade!

Outros posts

Cadastre-se como autor(a) no Ver-O-Poema.

Após se cadastrar você poderá enviar suas próprias postagens e nós cuidaremos das configurações.

assine nossa newsletter

postagens recentes

comentários recentes

divulgação

Cabeza de serpiente emplumada, novo livro de poesia de Claidio Daniel (Cajazeiras: Arribaçã, 2025)

vendas

Em Pssica, que na gíria regional quer dizer ‘azar’, ‘maldição’, a narrativa se desdobra em torno do tráfico de mulheres. Uma adolescente é raptada no centro de Belém do Pará e vendida como escrava branca para casas de show e prostituição em Caiena.
Um casal apaixonado. Uma intrusa. Três mentes doentias. Agora em uma edição especial de colecionador com capítulo extra inédito, conheça o thriller de estreia de Colleen Hoover, que se tornou um fenômeno editorial e best-seller mundial.
Editora Rocco relançou toda a sua obra com novo projeto gráfico, posfácios e capas que trazem recortes de pinturas da própria autora
Considerado o livro do ano, que virou febre no TikTok e sozinho já acumulou mais de um milhão de exemplares vendidos no Brasil.
A Biblioteca da Meia-Noite é um romance incrível que fala dos infinitos rumos que a vida pode tomar e da busca incessante pelo rumo certo.
Imagine parar por alguns instantes e desfrutar de um momento diário com alguém que te ama e tem a resposta para todas as tuas aflições.
1
0
Adoraria saber sua opinião, comente.x