Fuga da poesia
eras o indulto e a passagem. pulavas nas palavras à maneira de um beduíno que enfrenta a paisagem tua face errante sublimada ergue a voz com o fio dos cutelos ferindo a madeira da estrada preenchendo as imensidões donde o nada negava repouso intercurso do esforço em saber que a poesia gesta inquieta, e exige silêncio – um silêncio povoado. na sela rocinante, mastigas a pólvora do veio ensolarado o suor, teu fado desde a infância sabe este sumo a língua diurna divide a faina entre a gordura e o sal do fervor de juras essa costura em tuas omoplatas não mente: não medes alturas e as funduras são teu alqueire como a águia de Gullar, mergulhas e ao que indistintamente engulas explode o refluxo do mar ora tornado areia e miragem disso tudo, sabes, há de urgir a carruagem do devir órfã de qualquer caravana à margem dos dias, meses, semanas em que desenganas o que sentes.
A escritura
uma vez mais compreendes o que te cerca: a conversa escura e multitudinária os olhares ubíquos das rapinas. repetes coitos e mantras na surdez esfacelada enquanto nada mais é tão nítido. tens a agonia súbita das retinas, a recusa orgulhosa do pão doado e a teu lado, a qualquer hora, ardem querências ansiosas. forjas o brilho das rosas descritas e o verbete inédito segue intocado. buscas calado o que te ousa doer, e a farpa dourada adorna-te a garganta. … uma vez mais agiganta-se o sentido: acrílico, zinco, a curvatura vistosa do próximo crepúsculo a musculatura da infância, irresistível e elástica, a medida lúdica do exercício mortal, a escritura (essa inversa procura do que sabemos inexistir e acerca do que terminamos por auscultar, mímicos, nas palavras que nos concorrem emersas d’um leito invisível).
Sangue de barro
andando pelo bairro Guamar mais do que andar desandar a colher dessas casas o rumor de mar de gente a andar gênese da febre de encontrar em cada esquina estar o bem e o mal bebendo em mesa de bar em beira de mágoa amargar o sangue de barro o escarro do trânsito o transe turvo da água basta para gastar a encosta pode custar a vida inteira a andança pelo bairro sem esperança a piçarra descalça caroços e serragem ruminam os fósseis da lepra primeva – Eva e Lázaro Adão e Desdêmona um demônio que habita as castanheiras derrubadas coroado pelo desdém das fadas afeta os transeuntes no signo no berço úmido das arcadas até a arca do mistério no cemitério Santa Isabel.
