Acordei disposto, ainda carregando nas primeiras horas do dia o peso leve dos sonhos da noite. Há poucos dias, durante o café da manhã, contava à Letícia e Luciane os pesadelos que me visitaram. Surpreenderam-se com a riqueza de detalhes que eu lembrava — e, de fato, até hoje eles me retornam à memória com a nitidez de quem revive acontecimentos. Gosto. Mas não é sobre eles que quero falar.
Nesta semana, reencontrei o querido colega da UBE João Batista Andrade, cineasta premiadíssimo. Jovial, elegante, com aquele brilho nos olhos de quem ainda se encanta com a arte. Conversamos longamente: eu sobre literatura, contou-me sobre seu novo romance. Emendou sobre cinema e, entre uma história e outra, falou-me da portaria eletrônica recém-instalada em seu prédio.
— Isto aqui é uma maravilha — disse, rindo. — Basta aproximar o rosto e a porta se abre.
Contou que, no início, teve receio de o sistema falhar, mas logo concluímos que a tecnologia, consolidada como está, quase não erra. Avança célere, reduz custos, simplifica processos — e, inevitavelmente, elimina postos de trabalho.
Eu, por minha vez, moro em um edifício na Mooca que ainda resiste ao automatismo. Na última reunião, por votação apertada, decidimos manter o atendimento humano. Todos ganham, todos perdem. Ganhamos a presença atenta de pessoas que nos conhecem pelo nome e entendem nossos hábitos; perdemos no bolso. E assim seguimos, como quem balança numa gangorra: de um lado, o conforto do progresso, do outro, a delicadeza das relações humanas.
De segunda para cá, caminhei bastante. O pão de cada dia exige movimentos — e não reclamo. Conviver com pessoas tão diversas, em lugares distintos, alimenta quem escreve.
Vocês acham que é simples encontrar assunto todos os domingos, há mais de quinze anos? Não é. Ainda mais quando se escolhe um caminho: o da crônica, que não se contamina com política, futebol ou religião — e tampouco se deixa dominar pela ficção, essa moda recente. Prefiro a crônica raiz, aquela que nasce do cotidiano e das pequenas experiências, não a Nutella.
Não acredito que, por ser crônica, valha tudo. Ela precisa brotar de um fato corriqueiro, vivido por quem escreve, com uma pitada de humor e outra de ironia.
— Assim você reduz muito o gramado — já reclamaram.
Paciência. Ninguém prometeu que o jogo seria fácil.
Fernando Dezena
fernandodezena.arteblog.com.br
São Paulo, SP, 12 de outubro de 2025.
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