“No limiar das flores, na cirúrgica flacidez das nuvens, no blackout do crepúsculo & na loucura de Proust e Hilda, eu escrevo poesia. […] Escrevo porque sei que o coelho se esconde atrás das palavras.”
Dialeto das Nuvens, de Christian Dancini: entre o caos e a graça
O livro de poemas Dialeto das Nuvens, do poeta Christian Dancini, foi publicado pela Editora Patuá, no ano de 2023. Trata-se de um pulsante livro de poemas, uma construção lírica que respira entre a falência existencial e o epifânico amoroso. A obra está dividida em três partes: “Saturno”, “Netuno” e “Mercúrio”. Christian Dancini cria uma cosmogonia íntima, onde o eu se desfaz e se recompõe o tempo todo, não por respostas, mas pela linguagem que tenta nomear o que não pode ser dito. A obra dialoga, se é possível dizer que há diálogos nos versos, com a tradição mística da poesia ocidental, de Herberto Helder a Murilo Mendes, de Enrique Lihn a Jorge de Lima, trazendo essa tradição para o presente, incluindo referências filosóficas (Nietzsche, Heidegger), mitológicas (Cronos, Caronte, Dionísio) e até astrofísicas (quasares, pleromas, nebulosas), sem perder o contato com o cotidiano. Parece que o poeta andou se embriagando nessas leituras.
Desde o poema inaugural, “Entropia”, o leitor é lançado em um universo onde o afeto e a desordem coexistem indissociavelmente:
Caos no fundo daqueles olhos, beijar aquelas pálpebras seria o mesmo que tocar o outono.
O gesto amoroso, “beijar as pálpebras”, é comparado ao toque do outono, estação de transição entre verão e inverno, a queda das folhas das árvores, as noites mais longas, a decadência! Não há idealização romântica aqui; há, ao que parece, uma consciência aguçada de que toda intimidade carrega em si o germe da efemeridade. Verifica-se na superfície do livro que essa tensão entre beleza e ruína perpassa do início à última página, tornando-se o cerne ético e estético da poética de Christian Dancini.
Cresce a obra, se torna robusta ao articular o metafísico com o concreto, o cósmico com o corporal. Há no poema “Coração índigo”, por exemplo, o eu lírico evocando uma figura quase angélica, mas a aporta em sensações físicas e emocionais precisas:
Um anjo azul e rosa que pousou na ponta da minha melancolia.
A cor “índigo”, repetida como leitmotiv, não se trata de um apuro cromático; é um campo semântico que abriga a tristeza, a espiritualidade e a infância. O anjo não paira no céu, mas pousa na “ponta da melancolia”, como se a dor fosse um triste horizonte habitável e, até mesmo, acolhedor. Parece haver uma inversão, em que o sofrimento se torna espaço de encontro. Isso revela a originalidade do olhar poético desse autor. E a originalidade é ouro na poesia.
A segunda parte do livro, “Netuno”, aprofunda essa fusão entre Eros e cosmogonia. Aqui, o corpo feminino é celebrado como força telúrica, origem e amparo. Em um dos trechos mais intensos dessa caminhada, o poeta escreve:
Há vida nos bosques alados dos teus seios.
Há um pouco de mar em todos os cantos do teu corpo.
Uma estrela que fende o tempo macio.
São versos que sintetizam a visão sacral do amor que percorre a obra: o encontro amoroso é um ato de criação que consegue dividir o tempo e dar origem à vida.
Não por acaso, o poeta dedica um poema a Herberto Helder, citando-o explicitamente: “E o amor é a soma da infância.” Esse verso não é mero tributo; é o cerne de sua ética poética. Para Christian Dancini, amar é recuperar a inocência perdida, não como nostalgia, mas como possibilidade de renascimento.
Mas, que seja importante dizer, o livro não se furta ao confronto com a escuridão. Em “O vazio”, o eu lírico enfrenta a iminência do colapso com uma lucidez desarmante:
Escrevo por medo da morte — que também é vazia e silente —.
[…]
Quando viver não significa mais nada.
Quando nem de chorar meu corpo turvo é capaz.
Essa passagem é crucial: o poeta escreve, não como um ato de vocação, mas como defesa. Um ato de resistência e enfrentamento ao silêncio absoluto que a morte carrega. E, ainda assim, o poeta não cede ao desespero. Em “Elegia n° 2”, ele afirma com força quase profética:
Escrevo contra a morte: em direção à vida.
Esse duplo movimento, de escrever por medo e contra o medo, demonstra a atitude ética do poeta. Ele não oferece consolo fácil, mas propõe a palavra como espaço de sobrevivência. A linguagem, mesmo quando falha, é o que nos impede de desaparecer por completo.
A organização do livro também merece destaque. As três partes, Saturno (tempo, melancolia, destruição), Netuno (intuição, amor, caos criativo) e Mercúrio (comunicação, movimento, crise), evocam arquétipos astrológicos, mas os transformam. Saturno, normalmente ligado à disciplina e ao tempo que tudo consome, aqui parece representar o guardião da fragilidade humana. Netuno, o senhor das ilusões, veste-se de o deus do amor verdadeiro. Mercúrio, o mensageiro, carrega o peso do silêncio e da falta de comunicação. Há uma leitura dos símbolos que denota certa sofisticação intelectual de Christian Dancini, que vai além das referências, transformando-as em poesia viva.
E há sim, uma dimensão filosófica em toda a obra. No poema “Os caminhos da morte”, o poeta propõe uma reflexão quase teológica sobre o fim da vida, mas com uma simplicidade que evita o dogmatismo:
A morte é uma luz a fraquejar, bruxuleando, como pequenos infinitos a romper em cada canto. Ela nunca apaga a existência por completo, apenas cintila, pisca, mas volta sempre a acender as chamas da vida nos olhos do amor.
Essa visão não é niilista nem consoladora; é poética. A morte não é o fim absoluto, mas um limite, e a poesia seria o ato de atravessar esse limite de olhos abertos?!
Se o leitor chegar ao poema “Fenômeno estático”, perceberá sem esforço que Christian Dancini explora a contradição entre movimento e paralisia, entre desejo e impossibilidade:
Tu, estática, eu, passos que floresciam dentes-de-leão pela grama.
Tu, inerte, eu, veemente, me aproximava algures, em ti, monótono, docemente.
Tu, destreza, eu, pusilânime, amedrontado animal que se esconde.
Tu, incompatível, eu, completamente louco…
A repetição de “Tu, incompatível, eu, completamente louco” funciona como um mote existencial, ecoando a lógica do desejo irrealizável; tema caro à tradição lírica. A beleza aqui reside na aceitação da incompatibilidade como condição de existência, não como fracasso.
Você lerá “Verônica”. No poema, o poeta alcança um dos ápices líricos do livro, fundindo devoção, erotismo e transcendência:
Se uma nuvem morre em teus seios, uma fênix renasce no teu sexo.
[…]
Dizer teu nome na noite mais obscura, alumia os gritos das tempestades: relâmpagos de fogo.
A imagem morte da nuvem e da fênix que renasce sintetiza a lógica regenerativa do livro: a destruição é sempre prelúdio de renascimento. O corpo feminino é o altar onde o sagrado e o profano se confundem, não por escândalo, mas por necessidade ontológica.
Em “Elegia n° 1”, Dancini assume a poesia como último reduto diante do absurdo:
No limiar das flores, na cirúrgica flacidez das nuvens, no blackout do crepúsculo & na loucura de Proust e Hilda, eu escrevo poesia.
[…]
Escrevo porque sei que o coelho se esconde atrás das palavras.
Aqui, a escrita não é aptidão, ou vocação, mas ato de resistência metafísica. Nascendo, não apesar do caos, mas por causa dele, feito um gesto de fidelidade ao que ainda pulsa sob os escombros da razão.
Ao final, o poeta pergunta, com uma simplicidade que incomoda fundo:
Uma sequoia se quebra no meio da floresta, quem irá ouvi-la?
Portanto, quem irá ler nas entrelinhas destes poemas meu pedido de socorro?
Essa pergunta ecoa como um apelo ético: a poesia não é luxo, é necessidade. E Dialeto das Nuvens é um livro a ser lido, e um lugar a ser habitado, com todas as suas trevas, seus relâmpagos e seus gestos de ternura inesperada. É uma obra ao leitor atento e com entrega emocional. Dessa forma será possível se ouvir o grito contido entre os versos in-transparentes, e o silêncio visível nos versos em branco.
Como escreve o próprio autor no ocaso do livro: “Escrever como quem planta vertigens e colhe relâmpagos dourados.” Aqui não se lê uma metáfora pueril; é manifesto estético. Christian Dancini instaura vertigens ao confrontar o leitor com o abismo do eu, mas colhe relâmpagos luminosos ao oferecer, na palavra, um fio de luz, tênue, mas suficiente.
Disponível pela Editora Patuá — uma obra para quem acredita que, mesmo nos tempos mais sombrios, ainda é possível escrever “como quem planta vertigens e colhe relâmpagos dourados”.
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