Publicado postumamente, Magma reúne poemas da juventude de João Guimarães Rosa, escritos antes de sua consagração como prosador. Neles já pulsa o experimentalismo linguístico, a musicalidade e a inquietação filosófica que mais tarde definiriam sua obra. São versos em que o sertão se mistura ao mito, à espiritualidade e à invenção verbal. Uma prévia da revolução estética e da vocabularia complicativante que Guimarães Rosa realizaria em Sagarana e Grande Sertão: Veredas.
“Obra escrita — obra já lida — obra repudiada: trabalhar em colmeias opacas e largar o enxame ao seu destino, mera ventura de brisas e de asas.”
João Guimarães Rosa, discurso de agradecimento pelo prêmio da Academia Brasileira de Letras referente a Magma.
Contam que o livro recebeu o prêmio no concurso literário em que os julgadores se negaram a indicar segundo e terceiro lugares.
O crítico Fábio Lucas, em artigo na Revista Cult, descreve Magma como “diamantes entre cascalhos”, reconhecendo que, embora os poemas revelem imaturidade juvenil, já anunciam a potência inventiva que marcaria a literatura de Guimarães Rosa.
Segundo Maria Célia de Moraes Leonel, em Guimarães Rosa: Magma e gênese da obra, “nos versos de Magma, Rosa experimenta o gesto da criação literária como quem tateia o próprio idioma, buscando sua voz no magma incandescente da língua”.
Assim, Magma é um testemunho precioso. O início do vulcão criativo singular na literatura brasileira.
Elegia
Teu sorriso se abriu como uma anêmona
entre as covinhas do rosto infantil.
Estavas de pijama verde,
nas almofadas verdes,
os pezinhos nus, as pernas cruzadas,
pequenina,
como um ídolo de jade
que teve por modelo uma princesa anamita.
Tuas mãos sorriam,
teus olhos sorriam,
o liso dos teus cabelos pretos sorria,
e mesmo me sorriste,
e foi a única vez…
Não pude calçar, com beijos os teus pezinhos,
e não pudeste caminhar para mim…
Mas é bem assim que os meus sonhos se possuem.
Alaranjado
No campo seco, a crepitar em brasas,
dançam as últimas chamas da queimada,
tão quente, que o sol pende no ocaso,
bicado
pelos sanhaços das nuvens,
para cair, redondo e pesado,
como uma tangerina temporã madura…
Verde
Na lâmina azinhavrada
desta água estagnada,
entre painéis de musgo
e cortinas de avenca,
bolhas espumejam
como opalas ocas
num veio de turmalina:
é uma rã bailarina,
que ao se ver feia, toda ruguenta,
pulou, raivosa, quebrando o espelho,
e foi direta ao fundo,
reenfeitar, com mimo,
suas roupas de limo…
Saudade
Saudade de tudo!…
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!…
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim…
Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!…
Pressa!…
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!…
Como quem fecha numa gota
o Oceano
afogado no fundo de si mesmo…
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– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

