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Um lenço vermelho & Tortura — dois contos poéticos de Carlos Pessoa Rosa

Um lenço vermelho

Carlos Pessoa Rosa — Um lenço vermelho
“Um lenço vermelho”

para quem acena a jovem? não vejo viva alma, nem mesmo sombra na direção do aceno. talvez seja eu o cego a não ver o futuro. não há trem, ônibus ou navio partindo ou chegando. há apenas um aceno na promessa de uma noite escura e fria. talvez uma jovem sonâmbula. delirantes acenam para os fragmentos perdidos na mente. neles os corpos existem enquanto alucinações e ilusões. ou mesmo tudo não passe de um delírio de quem atrás de uma narrativa em um final de tarde também inexistente. estar ou não estar não impede de se dar vida onde sorumbáticos desfilam ausentes e invisíveis uns aos outros. desnudar esse limite entre o real e a ficção seria como passar uma navalha afiada no lençol do tempo.

ainda há pouco a praia um formigueiro ruidoso embebido em álcool. a algazarra das crianças na areia e na água. em novas descobertas. os verdadeiros seres vivos na praia. o horizonte alaranjado de final de tarde e as águas calmas do mar. não faz muito duas crianças retardatárias pegaram suas bicicletas e desapareceram. engolidas na escuridão da distância. na natureza o constante e o sereno ocorrem apenas num recorte de tempo. o instante como eterno é da ordem do poético. lembro-me da jovem de lenço vermelho no pescoço e nua acenar na direção do oceano. entre o aceno e o propósito nada prospera sem destinatário. acenos em desertos são estéreis. não haveria dunas sem o vento.

não demora a noite. o Sol posto e a Lua prenhe. para aquele aceno não há passado nem futuro. uma narrativa sem emanações a serem decifradas. o que é do puro aprendizado não serve à escrita. é das ditaduras o texto congelado, as pontuações como marcha militar. ali apenas uma jovem nua que acenava. um corpo que gesticula para o nada é presente sem passado e de futuro incerto. nela não há mais esperança. fugaz registro fotográfico. um desvio do olhar e no retorno a jovem não mais ali com seu aceno. no mesmo instante em que a Lua lança um cone de luz que vai da praia até o mar adentro.

restou o lenço vermelho que ela trazia no pescoço. um vento frio vindo do mar agita-o na areia. em cambalhotas o aceno segue na praia até enroscar-se a um arbusto. ali eterniza o gesto na direção do nada. agora não mais fruto do propósito de uma jovem nua; mas do vento. permaneço quase hipnotizado por aquele agitar sem objetivo. movimentos ciganos. em um instante poderia desgarrar-se dali. o instante é o tempo que marca a história humana. as inspirações vindas da terra têm seus códigos para dizer da vida e da morte. necessário decifrá-los. ninguém parte ou chega além do Sol e da Lua nessa viagem cósmica. o horizonte alaranjado no início da noite e as águas calmas do mar. o momento como eterno. um aceno perdido do corpo. onde o desejo pernoitou e nunca mais acordou?

era a pergunta pertinente que me fazia. olhar para dentro. sentado no banco de areia. nem o badalar do sino ao longe concorria com o marulhar do exílio imposto pelas circunstâncias. quem constrói o presente na experiência do passado nega os fluxos da natureza. o futuro é da ordem de tânatos. viver é a resultante matemática do imponderável. uma arritmia arrítmica. pulsar dos contrários. utopia plantar desejo no futuro. o amanhã não passa de um gesto na direção do vazio. o aceno de um lenço vermelho perdido de seu corpo. anular contrários é a tática da pausa. noite que se achega a apagar todas as sombras. longe um corpo nu e sem lenço vermelho no pescoço acena e parte… enfim o descanso.

Carlos Pessoa Rosa


Tortura

Ilustração por Emerson Persona
Ilustração por Emerson Persona

Odeio o sujeito. Mas seu rosto é natureza morta. Congelado pelo tempo. Ao chegar, eu já me encontrava imobilizada. Nua. Meu corpo suado debaixo de um cone de luz. Já não apertava mais as coxas para esconder o sexo. Mataram qualquer expressão de vergonha ou resistência. As pernas abertas como as da profissional do sexo que aguarda a próxima moeda; como o cofre da infância. Um metro e sessenta, não mais. Não me esqueço dos passos do coturno e da valise que depositava sobre a mesa velha e engordurada. Como esquecer o nariz rosáceo e as enormes sobrancelhas negras. As mãos pequenas a abrir, sadicamente, a valise, com a lentidão das lesmas. De lá retirava o chicote, o alicate, agulhas de diversos tamanhos, velas, fósforos, gel condutor e chumaços de algodão que enfiava em minha boca para que não gritasse. Quando todos os recursos não me levavam a alcaguetar algum companheiro, abria a braguilha, retirava o pau duro – excitava-se com a tortura – e o levava até minha boca. Naquele dia guardou na valise um dente e uma unha recém conquistados: colecionava nossos pedaços. Decidida, mordi com tanta raiva o membro, que guardei comigo sua glande. Hoje vivo em uma cadeira de rodas, fruto do espancamento que se seguiu. O que senti? Ouça The Ants-Whip in my valise. Há um chicote na minha valise oh yeah/ Quem te ensinou a tortura?/ Quem te ensinou?

Carlos Pessoa Rosa


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Assim descreveu o autor o professor de literatura portuguesa em Columbia, Ebion Delima, em memória: “além de médico e professor, Carlos Alberto Pessoa Rosa, caminha pelo conto com um fraseado robusto e a cadência de uma prosa surpreendente, indícios indefectíveis de ficcionista autêntico”. Nascido na cidade de São Paulo, entre a Lapa e Pirituba, fixou moradia, depois de formado e fazer pós-graduação pela Faculdade de Ciências Médicas de São Paulo, na cidade de Atibaia. Casado com Lúcia Rosa, do Coletivo Dulcinéia Catadora, tem dois filhos, Marcos e Silvia, e Rafael e Melissa, como netos. Em 1998, o Centro de Editoração Pernambuco publicou o livro de contos “A Cor e a Textura de uma Folha de Papel em Branco”, vencedor do Prêmio Nacional UBE-PE, categoria ficção, jurado Raimundo Carrero, publicado pelo Centro de Editoração Pernambuco. Em 2010 agraciado no Literatura para Todos, MEC, gênero Novela, com o livro Sabenças. Na mesma época teve o livro infantil Una Casa Bien Abierta, publicado pela pequeño editor, Buenos Aires Argentina, com ilustração de Claudia Legnazzi. Contista selecionado no MAPA CULTURAL, teve seu texto publicado no D.O. Leitura. “Vitrais”, livro de poesias premiado na UBE-RJ, 1992, e “Factrais”, poesias, prêmio Ruth Scott do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, permanecem inéditos. Internacionalmente foi selecionado entre os 30 melhores contistas, 1994, e 20 melhores contistas, 1998, na Rádio Francesa Internacional. Em poesia foi selecionado no Instituto Piaget, Portugal, 1993/1995 e no prêmio “Carlos Sabat Ercasty”, Uruguai, 1993. O autor tem o prazer de fazer parte dos privilegiados poetas que tem seu trabalho selecionado para ser publicado na revista “Dimensão”. Atuante do Coletivo Dulcinéia Catadora, com livros publicados no gênero conto e poesia. No gênero crônica levou o primeiro Prêmio Stanislaw Ponte-Preta, jurado Gilberto Noll. Na poesia, ganhou o prêmio do Instituto Internacional de Poesia com o livro “Fonte Criadora”, publicado em 1990. “Mortalis”, prêmio Xerox, livro publicado pela editora Livro Aberto. Trata-se de um ensaio sobre a morte. Selecionado nos prêmios Cidade de Belo Horizonte, Poema no Ônibus, Poemas Azuis, Paulo Leminski, Caetano Veloso, Linguagem Viva, Sinpro – onde recebeu menção especial pelo conjunto dos trabalhos -, Academia Montesclarense, Via-Verso, Academia Feminina Mineira de Letras e Escriba, o autor participou do Atibaia 90, Varal Cultural de Leme e Salão de Poesia Psiu Poético. Juntamente com outros poetas organizou o espetáculo Violão e Poesia apresentado na Casa da Cultura Jandira Massoni, em Atibaia. Convidado pela Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo, participou da feira do livro de Presidente Prudente e São José do Rio Preto. Foi um dos escritores da nova geração escolhido para receber o público leitor na Casa Mário de Andrade, em São Paulo, tendo organizado, junto com Lúcia Rosa, Oficina de Criação Literária, no mesmo local, em 1999. Participou de vários eventos em homenagem ao escritor André Carneiro, membro do grupo curador da Semana André Carneiro na cidade de Atibaia. O escritor tem trabalhos publicados em diversos periódicos (Folha de São Paulo – Caderno Sudeste, Revista Olhar da UFSCarlos, Philos, Linguagem Viva (SP), Correio do Sul (MG), Blau (RS), Garatuja (RS), Radar (GO), Blocos (RF), Atibaiense (SP), Jornal de Atibaia (SP), Luzes da Cidade (SP), Blow Up (SP), Café Expresso (SP), Revista Incomunidade (Portugal), Jornal da Associação Médica Brasileira, Associação Paulista de Medicina e Conselho Estadual e Federal de Medicina) e sites culturais (Blocos, Marcozero, Cafecomletrinha e Revista Proa). Atuante na área de bioética, foi coordenador do livro “Relacao Médico-Paciente: um encontro” entre outros. Foi editor do site meiotom poesia & prosa, seus livros podem ser encontrados na plataforma Amazon no formato e-book e papel.

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