Um lenço vermelho
para quem acena a jovem? não vejo viva alma, nem mesmo sombra na direção do aceno. talvez seja eu o cego a não ver o futuro. não há trem, ônibus ou navio partindo ou chegando. há apenas um aceno na promessa de uma noite escura e fria. talvez uma jovem sonâmbula. delirantes acenam para os fragmentos perdidos na mente. neles os corpos existem enquanto alucinações e ilusões. ou mesmo tudo não passe de um delírio de quem atrás de uma narrativa em um final de tarde também inexistente. estar ou não estar não impede de se dar vida onde sorumbáticos desfilam ausentes e invisíveis uns aos outros. desnudar esse limite entre o real e a ficção seria como passar uma navalha afiada no lençol do tempo.
ainda há pouco a praia um formigueiro ruidoso embebido em álcool. a algazarra das crianças na areia e na água. em novas descobertas. os verdadeiros seres vivos na praia. o horizonte alaranjado de final de tarde e as águas calmas do mar. não faz muito duas crianças retardatárias pegaram suas bicicletas e desapareceram. engolidas na escuridão da distância. na natureza o constante e o sereno ocorrem apenas num recorte de tempo. o instante como eterno é da ordem do poético. lembro-me da jovem de lenço vermelho no pescoço e nua acenar na direção do oceano. entre o aceno e o propósito nada prospera sem destinatário. acenos em desertos são estéreis. não haveria dunas sem o vento.
não demora a noite. o Sol posto e a Lua prenhe. para aquele aceno não há passado nem futuro. uma narrativa sem emanações a serem decifradas. o que é do puro aprendizado não serve à escrita. é das ditaduras o texto congelado, as pontuações como marcha militar. ali apenas uma jovem nua que acenava. um corpo que gesticula para o nada é presente sem passado e de futuro incerto. nela não há mais esperança. fugaz registro fotográfico. um desvio do olhar e no retorno a jovem não mais ali com seu aceno. no mesmo instante em que a Lua lança um cone de luz que vai da praia até o mar adentro.
restou o lenço vermelho que ela trazia no pescoço. um vento frio vindo do mar agita-o na areia. em cambalhotas o aceno segue na praia até enroscar-se a um arbusto. ali eterniza o gesto na direção do nada. agora não mais fruto do propósito de uma jovem nua; mas do vento. permaneço quase hipnotizado por aquele agitar sem objetivo. movimentos ciganos. em um instante poderia desgarrar-se dali. o instante é o tempo que marca a história humana. as inspirações vindas da terra têm seus códigos para dizer da vida e da morte. necessário decifrá-los. ninguém parte ou chega além do Sol e da Lua nessa viagem cósmica. o horizonte alaranjado no início da noite e as águas calmas do mar. o momento como eterno. um aceno perdido do corpo. onde o desejo pernoitou e nunca mais acordou?
era a pergunta pertinente que me fazia. olhar para dentro. sentado no banco de areia. nem o badalar do sino ao longe concorria com o marulhar do exílio imposto pelas circunstâncias. quem constrói o presente na experiência do passado nega os fluxos da natureza. o futuro é da ordem de tânatos. viver é a resultante matemática do imponderável. uma arritmia arrítmica. pulsar dos contrários. utopia plantar desejo no futuro. o amanhã não passa de um gesto na direção do vazio. o aceno de um lenço vermelho perdido de seu corpo. anular contrários é a tática da pausa. noite que se achega a apagar todas as sombras. longe um corpo nu e sem lenço vermelho no pescoço acena e parte… enfim o descanso.
Carlos Pessoa Rosa
Tortura
Odeio o sujeito. Mas seu rosto é natureza morta. Congelado pelo tempo. Ao chegar, eu já me encontrava imobilizada. Nua. Meu corpo suado debaixo de um cone de luz. Já não apertava mais as coxas para esconder o sexo. Mataram qualquer expressão de vergonha ou resistência. As pernas abertas como as da profissional do sexo que aguarda a próxima moeda; como o cofre da infância. Um metro e sessenta, não mais. Não me esqueço dos passos do coturno e da valise que depositava sobre a mesa velha e engordurada. Como esquecer o nariz rosáceo e as enormes sobrancelhas negras. As mãos pequenas a abrir, sadicamente, a valise, com a lentidão das lesmas. De lá retirava o chicote, o alicate, agulhas de diversos tamanhos, velas, fósforos, gel condutor e chumaços de algodão que enfiava em minha boca para que não gritasse. Quando todos os recursos não me levavam a alcaguetar algum companheiro, abria a braguilha, retirava o pau duro – excitava-se com a tortura – e o levava até minha boca. Naquele dia guardou na valise um dente e uma unha recém conquistados: colecionava nossos pedaços. Decidida, mordi com tanta raiva o membro, que guardei comigo sua glande. Hoje vivo em uma cadeira de rodas, fruto do espancamento que se seguiu. O que senti? Ouça The Ants-Whip in my valise. Há um chicote na minha valise oh yeah/ Quem te ensinou a tortura?/ Quem te ensinou?
Carlos Pessoa Rosa
Gostou dos contos de Carlos Pessoa Rosa?
Leia também seus poemas no Ver-O-Poema »

[…] Ler contos do autor → […]