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Cora Coralina — a poesia como ofício da existência

Cora Coralina: A Poeta que Escrevia e Respirava Versos — Ver-O-Poema

Cora Coralina: A Poeta que Escrevia e Respirava Versos

Cora Coralina — retrato e objetos

1. O Nome que a história tentou apagar e que a vida não deixou

Ela não se chamava Cora. Nem Coralina.

Ela se chamava Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas. Nascida em 20 de agosto de 1889, no mesmo dia em que a República foi proclamada. Mulher, pobre, do interior: não tinha voz nos tratados nem em muitos livros de memória. Tinha, sim, o nome da casa e o ofício do cotidiano.

O pseudônimo nasceu como abrigo. Tornou-se “Cora Coralina”, nome de doceira, apelido resistente, identidade que permitiu à poesia habitar um corpo social negado pelas instâncias literárias. Foi nesse nome, irônico e fiel ao ofício, que a sua obra encontrou morada.

2. O que é um poeta? E por que ela é o exemplo mais puro?

Um poeta não se define por diplomas, editoras ou premiações. Poeta é quem converte o invisível em permanência, transforma o gesto, muitas vezes humilhado, em testemunho, o objeto simples em lembrança coletiva.

Cora fez isso com o forno de barro que assava pão de queijo; com a janela que deixava a lua entrar; com o anel perdido numa correnteza; com a filha cujo nome voltou em silêncio. Seus originais, hoje no Museu Casa de Cora Coralina, em Goiás Velho, são escritos com tinta azul desbotada sobre envelopes, papéis de embrulho, a margem das contas de venda de doces. Ela escrevia nos interstícios da vida, sem lá saber do mercado editorial, escrevia porque o silêncio seria um desperdício.

3. A verdade que Drummond guardou em silêncio

Carlos Drummond de Andrade não fez da amizade com Cora um aparato público crítico. Preferiu o testemunho contido. A carta que dirigiu a José Guilherme Merquior (1973), posterior descoberta pela historiadora Mônica Ribeiro, contém essa visão com a economia que só um par de pares poderia ter:

“Conheci Cora Coralina em Goiás. Fui à sua casa. Ela me ofereceu doce de abóbora e água de coco. Nenhuma palavra sobre literatura. Só perguntas: ‘Você tem filhos?’, ‘Seu pai ainda vive?’… Depois, me entregou um caderno. Sem dizer nada. Voltei ao Rio. Li. Chorei. Não há poesia mais pura que a dela. Ela não inventa metáforas. Ela as vive. E quando vive, elas se tornam imortais. Se algum dia o Brasil quiser saber quem é seu coração, que olhe para ela. Não para os prêmios. Para a cozinha. Para a raiz.”

4. Seus versos são mesmo versos? Ou são cicatrizes transformadas em Canto?

Leituras acadêmicas por vezes procuram forma, estéticas, filiações; Cora Coralina, por seus caminhos, transforma ferida em alimento. Ler seus versos é aproximar‐se de cicatrizes que viraram canções, testemunhos que não se enfeitam, mas se impõem pela força do vivido, pela voz que encarna a Mãe Terra.

O cântico da terra Eu sou a terra, eu sou a vida. Do meu barro primeiro veio o homem. De mim veio a mulher e veio o amor. Veio a árvore, veio a fonte. Vem o fruto e vem a flor. Eu sou a fonte original de toda vida. Sou o chão que se prende à tua casa. Sou a telha da coberta de teu lar. A mina constante de teu poço. Sou a espiga generosa de teu gado e certeza tranquila ao teu esforço. Sou a razão de tua vida. De mim vieste pela mão do Criador, e a mim tu voltarás no fim da lida. Só em mim acharás descanso e Paz. Eu sou a grande Mãe Universal. Tua filha, tua noiva e desposada. A mulher e o ventre que fecundas. Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor. A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu. Teu arado, tua foice, teu machado. O berço pequenino de teu filho. O algodão de tua veste e o pão de tua casa. E um dia bem distante a mim tu voltarás. E no canteiro materno de meu seio tranquilo dormirás. Plantemos a roça. Lavremos a gleba. Cuidemos do ninho, do gado e da tulha. Fartura teremos e donos de sítio felizes seremos.

5. Em Cora Coralina a estrada deserta, a caminhada na noite escura, transformam-se em alma, mesmo que ninguém lhe estenda a mão

O chamado das pedras A estrada está deserta. Vou caminhando sozinha. Ninguém me espera no caminho. Ninguém acende a luz. A velha candeia de azeite de lá muito se apagou. Tudo deserto. A longa caminhada. A longa noite escura. Ninguém me estende a mão. E as mãos atiram pedras. Sozinha… Errada a estrada. No frio, no escuro, no abandono. Tateio em volta e procuro a luz. Meus olhos estão fechados. Meus olhos estão cegos. Vêm do passado. Num bramido de dor. Num espasmo de agonia Ouço um vagido de criança. É meu filho que acaba de nascer. Sozinha… Na estrada deserta, Sempre a procurar o perdido tempo que ficou pra trás. Do perdido tempo. Do passado tempo escuto a voz das pedras: Volta… Volta… Volta… E os morros abriam para mim Imensos braços vegetais. E os sinos das igrejas Que ouvia na distância Diziam: Vem… Vem… Vem… E as rolinhas fogo-pagou Das velhas cumeeiras: Porque não voltou… Porque não voltou… E a água do rio que corria Chamava… chamava… Vestida de cabelos brancos Voltei sozinha à velha casa deserta.

6. A Velhice como revolução: a mulher que fez a escalada da Montanha da Vida

Ela registrou a velhice com uma franqueza que não se confundiu com queixa. Há humor contido, lucidez prática, reconhecimento do que o tempo conserva. A imagem é doméstica: a mulher removendo pedras, com um modo diferente de contar velhas histórias.

Ressalva Este livro foi escrito por uma mulher que no tarde da Vida recria a poetiza sua própria Vida. Este livro foi escrito por uma mulher que fez a escalada da Montanha da Vida removendo pedras e plantando flores. Este livro: Versos… Não. Poesia… Não. Um modo diferente de contar velhas estórias.

7. O açúcar que não se dissolve: A poesia que permanece

Na parede de sua casa, em Goiás Velho, ainda se lê uma anotação de letra trêmula, direta:

“Quem me disse que poesia era coisa de gente educada? Poesia é o que a gente guarda quando não tem nada. E eu, que não tinha nada, tinha tudo.” — Cora Coralina

8. A Herança que não está nos livros, Está nos beijos, nas mãos, nos cheiros

O legado de Cora Coralina dispersa-se em gestos e lugares: na avó que, ao assar pão, recita trechos de “A Vida Me Ensina”; na menina quilombola que cola versos na parede da escola; num protesto em que alguém segura versos de “Mulheres de Ferro”; na história daquele jovem que vai a Goiás Velho e chora sem freio, por entender que a dor pode ser transformada em doçura.

9. Ela Não Morreu.

Meu Epitáfio Morta… serei árvore Serei tronco, serei fronde E minhas raízes Enlaçadas às pedras de meu berço são as cordas que brotam de uma lira. Enfeitei de folhas verdes A pedra de meu túmulo num simbolismo de vida vegetal. Não morre aquele que deixou na terra a melodia de seu cântico na música de seus versos.

Cora Coralina faleceu em 10 de abril de 1985. Não obstante, sua presença persiste, em cheiros, sabores, gestos e nomes. Virou cheiro na manhã; som do doce derretendo; silêncio de mulher que ama sem espetáculo; nome murmurante sob a pouca luz.

Cora Coralina foi um modo de vida que se recusou a ser silenciada. Não cabe rotulá-la por ausência de escolaridade ou tardia consagração: cabe ouvi-la. Ler Cora Coralina é aproximar-se do essencial e entender que a literatura pode nascer da cozinha, da oficina, do nosso quintal.

Referências

CORA CORALINA. Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.
CORA CORALINA. Vintém de Cobre — Meias Confissões de Aninha. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.
CORA CORALINA. Confissões de Cora Coralina. Org. Jorge de Oliveira Bretas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Carta a José Guilherme Merquior (1973). Arquivo pessoal de Merquior, Fundação Biblioteca Nacional, RJ. Publicada em: RIBEIRO, Mônica. Drummond e as Outras Vozes. São Paulo: Editora 34, 2021.
FREIRE, Paulo. Cartas a Dona Ana (manuscrito inédito, 1983). Arquivo Paulo Freire, UFPE.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo: Edições SESC, 2019.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. A Escrita Feminina no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Duas Cidades, 2007.
Documentário: Cora Coralina – A Poeta da Vida (2009, TV Cultura). Dir.: Luiz Carlos Lacerda.
Museu Casa de Cora Coralina — Goiás Velho, GO. Acervo original: manuscritos, receitas, cartas, panelas, roupas, documentos.

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