Três poemas que fundem mito, sertão e saudade.
Nos versos de “Ave Musa Incandescente”, “Noturno” e “A Viagem”, pulsa uma poesia que é ao mesmo tempo mítica, sertaneja e universal. Neles, Ariano Suassuna ergue uma voz ancestral que mistura misticismo e heroísmo, ecoando o canto dos profetas, vaqueiros e visionários do sertão. Há fogo e sangue, sol e deserto, feras e fantasmas. Uma mitologia própria do Nordeste profundo, onde o sagrado e o poético se fundem.
Em “Ave Musa Incandescente”, o eu lírico invoca uma musa solar e terrena, pedindo-lhe que forje no calor do sangue o trono da inspiração. O poema é uma epopeia sertaneja, onde o símbolo da Onça, o Porco-selvagem e o Príncipe Encoberto se entrelaçam num ritual de libertação e renascimento. É um canto de bravura e encantamento — uma pedra entalhada na carne da terra.
Já em “Noturno”, o tom se recolhe. As imagens se tornam sombrias e sensuais, povoadas de asas amarelas, ventos e luas vermelhas. O poeta se vê cercado por forças invisíveis, entre o desejo e o pressentimento da morte. É o momento mais íntimo e enfeitiçado, onde o amor e o fim se confundem na penumbra.
Por fim, “A Viagem”, inspirado no mote de Fernando Pessoa, mistura o espírito marítimo português à paisagem sertaneja. As caravelas do sangue aportam no planalto da Pedra, unindo o mar da aventura à seca da memória. O poeta, “Almirante louco” e “vaqueiro tresmalhado”, transforma o deserto em oceano e o coração em bússola ardente.
Entre o mito e a carne, esses poemas revelam um Brasil imaginário, feito de luz e sombra, de sonho e cinza. Neles, a poesia cumpre sua vocação mais antiga: dar forma ao invisível.
Ave Musa incandescente
Ave Musa incandescente
do deserto do Sertão!
Forje, no Sol do meu Sangue,
o Trono do meu clarão:
cante as Pedras encantadas
e a Catedral Soterrada,
Castelo deste meu Chão!
Nobres Damas e Senhores
ouçam meu Canto espantoso:
a doida Desaventura
de Sinésio, O Alumioso,
o Cetro e sua centelha
na Bandeira aurivermelha
do meu Sonho perigoso!
A Onça, por ser esperta
A Onça, por ser esperta,
já começa o seu Caminho,
Fez da sua Furna o ninho
e esturra que está alerta!
Será a Cadeia aberta!
Quanto ao Porco, é muito certo:
Fugirá para o Deserto,
e a Onça, com seu bramido,
libertará O Ferido,
o nosso Prinspe-Encoberto!
A Onça vai esturrando
atrás do Porco-selvagem:
matá-lo-á na passagem,
com nosso Prinspe ajudando!
O Rei vai ressuscitando
no Prinspe, sua Criança
E a Espora da remonstrança,
Pedra do Reino e da Prata,
no sangue desta Escarlata
Noturno
Têm para mim Chamados de outro mundo
as Noites perigosas e queimadas,
quando a Lua aparece mais vermelha
São turvos sonhos, Mágoas proibidas,
são Ouropéis antigos e fantasmas
que, nesse Mundo vivo e mais ardente
consumam tudo o que desejo Aqui.
Será que mais Alguém vê e escuta?
Sinto o roçar das asas Amarelas
e escuto essas Canções encantatórias
que tento, em vão, de mim desapossar.
Diluídos na velha Luz da lua,
a Quem dirigem seus terríveis cantos?
Pressinto um murmuroso esvoejar:
passaram-me por cima da cabeça
e, como um Halo escuso, te envolveram.
Eis-te no fogo, como um Fruto ardente,
a ventania me agitando em torno
esse cheiro que sai de teus cabelos.
Que vale a natureza sem teus Olhos,
ó Aquela por quem meu Sangue pulsa?
Da terra sai um cheiro bom de vida
e nossos pés a Ela estão ligados.
Deixa que teu cabelo, solto ao vento,
abrase fundamente as minhas mão…
Mas, não: a luz Escura inda te envolve,
o vento encrespa as Águas dos dois rios
e continua a ronda, o Som do fogo.
Ó meu amor, por que te ligo à Morte?
A viagem
[Com mote de Fernando Pessoa]
Meu sangue, do pragal das Altas Beiras,
boiou no Mar vermelhas Caravelas:
À Nau Catarineta e à Barca Bela
late o Potro castanho de asas Negras.
E aportou. Rosas de ouro, azul Chaveira,
Onça malhada a violar Cadelas,
Depôs sextantes, Astrolábios, velas,
No planalto da Pedra sertaneja.
Hoje, jogral Cigano e tresmalhado,
Vaqueiro de seu couro cravejado.
Com Medalhas de prata, a faiscar,
bebendo o Sol de fogo e o Mundo oco,
meu coração é um Almirante louco
Que abandonou a profissão do Mar.
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