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“Menos que isso, não consigo” – A carta de amor de Simone de Beauvoir

A Carta de Simone de Beauvoir para Nelson Algren

Os filósofos franceses **Simone de Beauvoir** e **Jean-Paul Sartre** passaram a maior parte da vida juntos, num relacionamento complexo e extraordinário que durou 51 anos, até a morte de Sartre, em 1980. Outros parceiros foram e vieram ao longo dos anos. Em 1947 Simone conheceu **Nelson Algren**, um romancista a quem ela não resistiu, apesar da longa distância que os separava. Eles se corresponderam por dezoito anos. Em 1950, ao voltar para casa de Chicago, cidade de Nelson, depois de uma viagem sem amor que deixou claro o fim do caso de que ela tanto desfrutara, Simone lhe escreveu uma carta.

Simone de Beauvoir, filósofa e escritora, em uma foto preto e branco

Hotel Lincoln, Nova York 30 de setembro de 1950

Nelson, meu mais querido e amado,

Você tinha acabado de sair quando um homem se aproximou sorrindo e me deu essa flor linda e louca, com os dois passarinhos e o amor do Nelson. Isso quase me fez perder a compostura: foi difícil “não chorar mais”. No entanto, sou mais da tristeza árida que do ódio frio, pois meus olhos continuam secos até agora, tão secos quanto um peixe defumado, mas por dentro meu coração parece um mingau espesso e sujo. Passei uma hora e meia esperando no aeroporto, por causa do mau tempo; o avião que vinha de Los Angeles não tinha sido capaz de pousar nessa neblina. Você fez bem em partir, essa espera final é sempre longa demais, mas foi bom você ter vindo. Obrigada pelas flores e por ter vindo, para não falar do resto. Então eu fiquei esperando com a flor roxa no peito, fingindo ler o suspense de MacDonald, e logo decolamos. A viagem foi tranquila — nenhum chacoalhão. Não dormi, fingi o tempo todo ler o suspense e fiquei te acarinhando no meu coração besta e sujo.

Nova York estava uma beleza: quente, ensolarada e cinzenta ao mesmo tempo. Que cidade esplendorosa! Não quis machucar meu coração indo até o Brittany. Escolhi o Lincoln, onde desembarquei três anos atrás, quando não conhecia ninguém no continente inteiro e nem imaginava que ficaria tão estranhamente presa a Chicago. Peguei exatamente o mesmo quarto de antes, um pouco mais perto do céu, mas idêntico. Que esquisito me ver de novo nesse passado tão distante!

Como três anos atrás, fui ao salão de beleza do Lincoln: sem problemas também, o hotel parece vazio, o salão de beleza, vazio. Comprei a caneta para Olga, que fez catorze, então estou feliz por você ter me dado tantos dólares; vai ser suficiente. E andei e andei pela cidade, ao longo dessa Terceira Avenida que percorremos inteira na última noite, dois anos atrás, e em torno do Brittany, também, e mais uma vez eu te encontrava em todos os lugares e me lembrava de tudo. Vaguei pelo Washington Park, onde tem uma espécie de mercado de pulgas e pinturas feias à venda; subi no ônibus na Quinta Avenida e vi a noite cair sobre Nova York.

Agora são nove, só comi um sanduichinho desde o avião, não durmo desde Wabansia; estou absurdamente cansada. Vim para o quarto escrever para você e beber uísque. Mas não vou conseguir dormir agora. Sinto Nova York ao meu redor, e atrás de mim o nosso verão. Vou para a cama agora. Vou descer e ficar andando e sonhando, até estar absolutamente exausta.

Não estou triste. Estou mais é aturdida, muito distanciada de mim, sem acreditar que você está agora tão longe, tão longe — você, tão perto. Quero te dizer duas coisas antes de partir, e então não falarei mais disso, prometo. Em primeiro lugar, espero muito, quero e preciso muito te encontrar de novo algum dia. Mas lembre-se, por favor, de que eu nunca mais vou pedir para te encontrar — não por orgulho, porque não tenho disso com você, como sabe; mas nosso encontro só vai significar alguma coisa quando você assim quiser. Então vou esperar. Quando você quiser, é só dizer. Não vou supor que você voltou a me amar nem mesmo que precisa dormir comigo, e não precisamos ficar juntos por muito tempo — será como você tiver vontade, e quando tiver vontade. Mas saiba que estarei sempre esperando você me chamar. Não, não consigo imaginar que não vou te ver de novo. Perdi seu amor, e isso foi (e é) dolorido, mas não vou perder você. Enfim, Nelson, eu sou tão sua, o que você me deu significou tanto, que você nunca poderia tirar isso de mim. E sua gentileza e amizade foram tão importantes para mim que ainda me sinto confortada, e feliz, e absurdamente grata quando olho para você dentro de mim. Espero que essa gentileza e essa amizade nunca, nunca me abandonem. Quanto a mim, é desnorteante dizer isso, e me envergonho, mas esta é a única verdade: amo como te amei quando caí nos seus braços desiludidos, isto é, com todo o meu ser e meu coração sujo por inteiro; menos que isso, não consigo. Mas isso não vai te incomodar, querido, e não me escreva uma carta por obrigação, só escreva quando tiver vontade, sabendo que isso sempre me deixará muito feliz.

Bom, todas as palavras parecem bobas. Você parece tão perto, tão perto, me deixe me aproximar de você também. E me deixe, como antes, ficar em paz com o meu coração, para sempre.

Sua Simone

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