
Federico García Lorca pertenceu à icônica **Geração de 27**, um grupo de espanhóis que incorporou simbolismo e futurismo em suas obras. Ele assumiu a homossexualidade numa época em que a maioria escondia sua orientação sexual e lutou contra a depressão. Demonstrou um talento muito além de sua pouca idade, como visto em seu livro inicial, *Romancero gitano*.
García Lorca cresceu na Andaluzia e incorporou imagens de sua infância em seus poemas. Estudou com o ganhador do Prêmio Nobel **Juan Ramón Jiménez** e era amigo íntimo de **Salvador Dalí**. Além de poemas, García Lorca escreveu peças de teatro. O socialista convicto foi assassinado em 18 de agosto de 1936, aos 38 anos de idade, em meio a um período turbulento da história espanhola, provavelmente alvo de uma milícia nacionalista.
Volta de passeio
Assassinado pelo céu, entre as formas que vão até a serpente e as formas que buscam o cristal, deixarei crescer meus cabelos. Com a árvore de cotos que não canta e o menino com o branco rosto de ovo. Com os animaizinhos de cabeça rota e a água esfarrapada dos pés secos. Com tudo o que tem cansaço surdo-mudo e borboleta afogada no tinteiro. Tropeçando com meu rosto diferente de cada dia. Assassinado pelo céu!
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1910
**Intermédio** Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez não viram enterrar os mortos nem a feira de cinza de quem chora pela madrugada nem o coração que treme encurralado como um cavalo-marinho. Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez viram a parede branca onde mijavam as meninas, o focinho do touro, a seta venenosa e uma lua incompreensível que iluminava pelos cantos os pedaços de limão seco sob o negro duro das garrafas. Aqueles meus olhos no pescoço da égua, no seio trespassado de Santa Rosa adormecida, nos telhados do amor com gemidos e frescas mãos, em um jardim onde os gatos comiam as rãs. Desvão onde a velha poeira congrega estátuas e musgos. Caixas que guardam silêncios de caranguejos devorados. No lugar onde o sonho tropeçava com sua realidade. Ali meus pequenos olhos. Não me perguntem nada. Eu vi que as coisas quando buscam seu curso encontram seu vazio. Há uma dor de ocos pelo ar sem ninguém e nos meus olhos criaturas vestidas. Sem nudez!
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Fábula e roda dos três amigos
Henrique, Emílio, Lorenzo. Estavam os três gelados: Henrique pelo mundo das camas; Emilio pelo mundo dos olhos e das feridas das mãos, Lorenzo pelo mundo das universidades sem telhados. Lorenzo, Emilio, Henrique. Estavam os três queimados: Lorenzo pelo mundo das folhas e das bolas de bilhar; Emílio pelo mundo do sangue e dos alfinetes brancos; Henrique pelo mundo dos mortos e dos jornais abandonados. Lorenzo, Emílio, Henrique. Estavam os três enterrados: Lorenzo em um seio de Flora; Emílio na hirta genebra que se esquece no copo; Henrique na formiga, no mar e nos olhos vazios dos pássaros. Lorenzo, Emílio, Henrique, foram os três em minhas mãos três montanhas chinesas, três sombras de cavalo, três paisagens de neve e uma cabana de açucenas pelos pombais onde a lua pousa plana sob o galo. Um e um e um. Estavam os três mumificados, com as moscas do inverno, com os tinteiros que o cão urina e o vilão despreza, com a brisa que gela o coração de todas as mães, pelas brancas quedas de Júpiter onde os bêbados merendam a morte. Três e dois e um. Eu os vi perdidos chorando e cantando por um ovo de galinha, pela noite que mostrava seu esqueleto de tabaco, por minha dor cheia de rostos e pungentes lascas da lua, por minha alegria de rodas dentadas e látegos, por meu peito turvado pelas pombas, por minha morte deserta com um só passeador equivocado. Eu havia matado a quinta lua e bebiam água pelas fontes os leques e os aplausos, Leite morno encerrado das recém-paridas agitava as rosas com uma larga dor branca. Henrique, Emílio, Lorenzo. Diana é dura mas às vezes tem as tetas nubladas. Pode a pedra branca pulsar com o sangue do cervo e o cervo pode sonhar pelos olhos de um cavalo. Quando se fundiram as formas puras sob o cri-cri das margaridas, compreendi que haviam me assassinado. Percorreram os cafés e os cemitérios e as igrejas, abriram os tonéis e os armários, destroçaram três esqueletos para arrancar seus dentes de ouro. Já não me encontraram. Não me encontraram? Não. Não me encontraram. Porém se soube que a sexta lua fugiu torrente acima, e que o mar recordou de imediato os nomes de todos os seus afogados.
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Poema duplo do Lago Eden
Nuestro ganado pace, el viento espira Garcilaso Era minha voz antiga ignorante dos densos sumos amargos. Eu a adivinho lambendo meus pés sob as frágeis folhas molhadas. Ai, voz antiga de meu amor, ai, voz de minha verdade, ai, voz de meu flanco aberto, quando todas as rosas manavam de minha língua e a céspede não conhecia a impassível dentadura do cavalo! Está aqui bebendo meu sangue, bebendo meu humor de menino pesado, enquanto meus olhos se quebram no vento com o alumínio e as vozes dos bêbados. Deixai-me passar pela porta onde Eva come formigas e Adão fecunda peixes deslumbrados. Deixai-me passar, homenzinhos de cornos, ao bosque do espreguiçar e dos alegríssimos saltos. Eu sei o uso mais secreto que tem um velho alfinete oxidado e sei do horror de uns olhos despertos sobre a superfície concreta do prato. Porém não quero mundo nem sonho, voz divina, quero minha liberdade, meu amor humano no canto mais escuro da brisa que ninguém deseje. Meu amor humano! Esses cães marinhos se perseguem e o vento espreita troncos descuidados. Oh, voz antiga, queima com tua língua esta voz de folha de Flandres e de talco! Quero chorar porque tenho vontade como choram os meninos do último banco, porque eu não sou um homem, nem um poeta, nem uma folha, mas um pulso ferido que sonda as coisas do outro lado. Quero chorar dizendo meu nome, rosa, menino e abeto à margem deste lago, para dizer minha verdade de homem de sangue matando em mim a burla e a sugestão do vocábulo. Não, não, eu não pergunto, eu desejo, minha voz libertada que me lambe as mãos. No labirinto de biombos é minha nudez quem recebe a lua de castigo e o relógio coberto de cinzas. Assim eu dizia. Assim eu dizia quando Saturno deteve os trens e a bruma e o Sonho e a Morte estavam me buscando. Estavam me buscando ali onde mugem as vacas que têm patinhas de pajem e ali onde flutua meu corpo entre os equilíbrios contrários. Eden Mills, Vermont. 24 de agosto de 1929.
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Céu Vivo
Eu não poderei queixar-me se não encontrei o que buscava. Próximo das pedras sem sumo e dos insetos vazios não verei o duelo do sol com as criaturas em carne viva. Porém eu irei à primeira paisagem de choques, líquidos e rumores que tresanda a menino recém-nascido e onde toda superfície é evitada, para entender que o que busco terá seu alvo de alegria quando eu voar mesclado com o amor e as areias. Ali não chega a geada dos olhos apagados nem o mugido da árvore assasinada pela lagarta. Ali todas as formas guardam entrelaçadas uma só expressão frenética de avanço. Não podes avançar pelos enxames de corolas porque o ar dissolve teus dentes de açúcar, nem podes acariciar a fugaz folha do feto sem sentir o assombro definitivo do marfim. Ali sob as raízes e na medula do ar, compreende-se a verdade das coisas equivocadas. O nadador de níquel que espreita a onda mais fina e o rebanho de vacas noturnas com patinhas vermelhas de mulher. Eu não poderes queixar-me se não encontrei o que buscava; porém irei à primeira paisagem de umidades e pulsações para entender que o que busco terá seu alvo de alegria quando eu voar mesclado com o amor e as areias. Vôo fresco de sempre sobre leitos vazios, sobre grupos de brisas e barcos encalhados. Tropeço vacilante pela dura eternidade fixa e amor ao fim sim alvorecer. Amor, Amor visível!
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Paisagem com duas tumbas e um cão assírio
Amigo, levanta-te para que ouças uivar o cão assírio As três ninfas do câncer estiveram dançando, meu filho. Trouxeram umas montanhas de lacre vermelho e uns lençóis duros onde o câncer estava dormindo. O cavalo tinha um olho no pescoço e a lua estava num céu tão frio que teve de rasgar seu monte de Vênus e afogar em sangue e cinza os cemitérios antigos. Amigo, desperta, que os montes ainda não respiram e as ervas de meu coração encontram-se em outro lugar. Não importa que estejas cheio de água do mar. Eu amei por muito tempo um garoto que tinha uma plúmula na língua e vivemos cem anos dentro de uma navalha. Desperta. Cala. Escuta. Ergue-te um pouco. O uivo é uma longa língua roxa que deixa formigas de espanto e licor de lírios. Já vêm até a rocha. Não alargues tuas raízes! Aproxima-se. Geme. Não soluces em sonho, amigo. Amigo! Levanta-te para que ouças uivar o cão assírio.
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Valsa nos ramos
Homenagem a Vicente Aleixandre por seu poema O vale Caiu uma folha e duas e três. Um peixe nadava pela lua. A água dorme uma hora e o mar branco dorme cem. A dama estava morta no ramo. A monja cantava dentro da toronja. A menina ia do pinho à pinha. E o pinho buscava a pequena pluma do trinado. Porém, o rouxinol chorava suas feridas ao redor. E eu também porque caiu uma folha e duas e três. E uma cabeça de cristal e um violino de papel e a neve apodrecia com o mundo se a neve dormisse um mês, e os ramos lutavam com o mundo um a um dos a dois e três a três. Oh duro marfim de carnes invisíveis! Oh golfo sem formigas do amanhecer! Com o muuu dos ramos, com o ai das damas, com o croo das rãs, e o gloo amarelo do mel. Chegará um torso de sombra coroado de laurel. Será o céu para o vento duro como uma parede e os ramos desgalhados irão dançando com ele. Um a um ao redor da lua, dois a dois ao redor do sol, e três a três para que os marfins durmam bem.
Federico García Lorca
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