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‘Santos e o mar: discutindo a relação’, por Flávio Viegas Amoreira

Por Flávio Viegas Amoreira


Vista da praia de Santos, com o canal e o porto, sob um céu dramático. Imagem para a postagem de Flávio Viegas Amoreira.

Santos, nesga, naco mítico emprestado do mar, belo mar selvagem cantado por seu maior poeta, Vicente de Carvalho. Só por seus sonetos, já valeria do mar ter-lhe a terra embalado o berço. Essa Santos baía glutona, consumindo estroina do mar as riquezas. Côncava e reentrante, bioma surgido das ondas que lhe cobram de novo o espaço. Estamos conjecturando muito infraestruturas, sem pensar no mar que tudo decide. Até onde vai a paciência do deus das profundezas e vagas sonolentas, com o desatino dos seus hóspedes bancando ser ocupantes permanentes?

Uma das cenas mais carregadas de simbolismo de nossa era foi o Santo Padre de Roma abençoar um pedaço de gelo, de vinte mil anos, despregado na Groenlândia. Sinal dos tempos? Não! O horror ambiental somos em grande parte nós humanos, desde a Revolução Industrial. O mesmo Papa que nos alerta que a janela de reversão do caos climático está se fechando. Ao mesmo turno que devemos mudar estilo de vida dependente de combustíveis fósseis, não podemos perder de vista o esforço de resiliência a mitigar até o limite do possível para garantir a sobrevivência da espécie.

Numa derradeira entrevista, Sebastião Salgado ao jornal The Guardian, me impressionou ao pontificar: “O planeta vai se recuperar. Está cada vez mais fácil para o planeta nos eliminar. Duro e sincero, um artista e ecologista que não desistiu desse mesmo planeta. Salgado investiu heroicamente no reflorestamento do combalido Vale do Rio Doce. Semana passada, o Jornal Nacional divulgou ação de mesma persistência em Santos, que numa parceria com a Unicamp, aposta na tecnologia para conter o oceano bravio em nossas praias, toureando as vagas insinuantes. Conter a erosão resfolegante, moderar as ressacas potencializadas pelo esvaimento das calotas polares é uma epopeia digna de Sísifo, aquele personagem do mito grego, que é condenado a levar ao topo da montanha uma rocha que eternamente volta ao chão, para ser infinitamente reposta no cume.

Enquanto tentamos reverter a degradação, apostamos na contenção. 0 grande desafio para a almejada transição energética não será só a decisão de governantes, mas a reticência dos cidadãos em cumprir metas, a partir da mudança de comportamento. Revisão de hábitos de consumo, mudança de paradigmas no transporte, desde o carro até o uso de jatos, do subsídio a práticas poluentes e da insistência no petróleo com sofismas econômicos. Será difícil reverter a sanha por um presente hedonista, para legarmos a Terra a descendentes, sem que tenham de pagar a conta por nosso niilismo predador. 0 negacionismo climático é outro nome do cômodo autoengano. Não demorará para observarmos o flagelo dos exilados ambientais. Onde abrigar os deserdados pelo furor das temperaturas extremas? Aquela pedra de gelo diante do sumo pontífice nos adverte sobre o colapso. Colapso de moradias, colapso de safras, colapso de polinização, colapso de fotossíntese; colapsus, do latim, “que cai como um só bloco”.

Daqui dessa esquina portuária do mundo, torço a nosso horizonte que se perpetue honrando o visionário Saturnino de Brito. O exemplo de Santos, salvando a fimbria de sua ponta de praia mágica, é gota que vibra, ressoa, redime. Mar é útero. E temos tanto direito à sua brisa quanto os líquens. Ah! Se pudéssemos emergir com nossos olhos vivos no futuro, como num poema profético de Tennyson! Ver a nobre raça dos seres fraternos em comunhão, para muitas primaveras aos que virão nos apontando o dedo…


Flávio Viegas Amoreira

Foto do autor

Flávio Viegas Amoreira, nascido em Santos em 1965, é escritor, poeta, contista, romancista, dramaturgo e jornalista. Ao longo de sua carreira, foi parceiro estético de importantes compositores, como Gilberto Mendes e Livio Tragtenberg, com quem desenvolveu projetos de integração entre literatura e música. Em 2022, por ocasião do centenário de Gilberto Mendes, o escritor publicou uma biografia em homenagem ao músico e maestro santista. Ativo como agitador cultural, desenvolve projetos em São Paulo, Rio de Janeiro e no Litoral Paulista, promovendo discussões sobre artes de vanguarda, saraus poéticos e oficinas de criação literária. Sua produção literária inclui 14 livros, entre eles Maralto, A Biblioteca Submergida, Contogramas, Escorbuto, Cantos da Costa, Edoardo, o Ele de Nós, Oceano Cais, Desaforismos e Pessoa doutra margem. Amoreira também participou de diversas antologias de poesia e conto, incluindo Geração Zero Zero, que reúne escritores inovadores lançados na primeira década do século XXI, organizada pelo crítico Nelson de Oliveira.[5] No teatro, além de atuar como dramaturgo, concedeu uma polêmica entrevista ao diretor Antônio Abujamra no programa Provocações, da TV Cultura, onde discutiu temas relevantes para a literatura e a cultura brasileira. Seu engajamento nas universidades, nas revistas, nas redes sociais e na criação de arte digital destaca-se, reafirmando-o como uma das figuras mais dinâmicas da Novíssima Literatura Brasileira. Flávio Viegas Amoreira é associado ao movimento cultural santista que surgiu no final dos anos 70 e início dos anos 80, período marcado por desafios na cena artística e política pós-abertura do regime militar. Seu trabalho é caracterizado por uma profunda ligação com a geografia de Santos, cidade que inspira sua poesia e sua crítica social, frequentemente permeada por metáforas marítimas e um olhar atento às transformações culturais. Ao longo de sua carreira, Amoreira também atuou como professor em oficinas literárias. Em 2024, Flávio Viegas Amoreira foi eleito para a Academia Santista de Letras (ASL), ocupando a cadeira 25, cujo patrono é o poeta Vicente de Carvalho, consolidando sua influência no cenário literário. Flavio Viegas Amoreira tem se dedicado ao resgate de artistas ligados à cidade de Santos, destacando sua importância na literatura brasileira. Em 2024, organizou Vicente de Carvalho redescoberto (Editora Costelas Felinas), publicado no centenário da morte do poeta. Atualmente, Flávio Viegas Amoreira é colunista do jornal santista A Tribuna.

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