‘Muros, bunkers e bordéis’
Fernando Andrade: A solidão da palavra é o melhor advento de um poeta. Você clama companhia de seus achados poéticos, não para excluir a solidão, mas sim para torná-la amiga das horas. E ela vem com combate, com fúria. Comente.
Beth Brait Alvim: Combate e fúria. Sim. A solidão e o encarceramento de imagens e mundos em fonemas impostos, sob signos que não escolhi, sob uma combinação determinada, uma sonoridade convencionada, por vezes enlouquece. É como brilhantemente nos resgata Helder: conjugar tudo isso em um estilo é o que nos dá fôlego, e um tanto de sobrevida, e de vida, mesmo. Quando estou imersa nessa solidão surda da palavra poética, não vivo. Essa “amiga das horas” como você denomina o fenômeno, esse território inegociável para a escrita poética, para mim se transforma na madrasta dos contos de Grimm. É absolutamente trágico e amedrontador me entregar à poesia. Como uma perda de consciência, uma perda de si (embora não nos pertençamos de fato, sem o perceber, e embora eu creia firmemente que a Poesia maiúscula não prescinda do desregramento de sentidos preconizado por Rimbaud).
Nos anos de 1990, tentei abandonar a poesia em favor do teatro. Necessitava falar com e para alguém, sentir ouvidos atentos e olhos reveladores ou comovidos no ato da minha entrega. Hoje sinto desânimo para enfrentar todas as etapas de confecção de um livro, até receber, quem sabe, de um ou outro leitor, alguma impressão. É muito solitário. E muito prepotente.
Fernando Andrade: As três palavras do título ordenam certa gravitação de eixos nos seus poemas do livro. No mundo polarizado, elas fornecem muitas sínteses do seu pensamento sobre relações políticas e sociais. Comente.
Beth Brait Alvim: Sim, podemos dizer que sim. Fazer autocrítica do meu trabalho poético nunca me foi confortável. Nos idos de 1987, 89, em uma pós que cursei sobre Cultura na ECA-USP, meu professor de Antropologia do imaginário orientou-me a que fizesse um levantamento dos mitos recorrentes e metáforas obsessivas a partir de meu livro Mitos e ritos, 1987. À época, fiquei surpresa, estimulada, mas não fiz. Com os anos percebo, após um bom tempo de convívio com meus livros, alguns mitos recorrentes e metáforas obsessivas. No caso, em uma escala mais planetária, creio, o Muros parece mesmo sintetizar os grandes temas de uma era em estertor. Talvez por isso esteja chamando tanto a atenção. Mas vale acrescentar que os títulos de meus livros, todos, surgem do nada. De um nada povoado de poemas, experiências oníricas, estranhamento do linear, do lúcido, de modo que a imersão/solidão da escrita faça explodir o tema e o título. Ou seja, não há racionalismo em tudo isso. Tenho de fato escutado análises surpreendentes de leitores atentos que partem do título até as entranhas do Muros, bunkers e bordéis, que a Editora Reformatório abraçou tão competente e amorosamente.
Fernando Andrade: A imagética de seus versos, parecem pequenos curtos curtas de filmes surreais. Bunuel ganha. Fale mais sobre a linguagem deles.
Beth Brait Alvim: Nos eventos comemorativos dos 50 anos do Manifesto Surrealista, em 1974, pude assistir a “Um cão andaluz”. O curta me abismou e me abisma. Fugindo das aulas de Didática do ensino da FEUSP, assisti no Belas Artes a “O discreto charme da burguesia”, “A Bela da Tarde”, e, sem esquecer, um dos mais antigos mas maravilhoso “Os esquecidos”. Enfim, a obra de Buñuel, me abisma. No contexto do pós-guerra, que gerou tantos “ismos”, nichos intelectuais e estudantis degustaram, durante algumas décadas, de uma arte e uma cultura, e uma contracultura, que nos deslocavam das zonas de conforto e provocavam em nós uma potencialização para transvermos o mundo, como disse o poeta. Assim foi também com Pasolini, que assistíamos no Belas Artes ou no Bijou e, incrivelmente, com o Encouraçado Potemkim, de Eisentein, que vi em uma sala de aulas da FFLCH, escondida, vedada por panos pretos. Isso em um período de recrudescimento da ditadura militar, sob olhares perscrutadores e perseguições políticas, prisões, e tudo o que já sabemos, ou deveríamos saber. Era uma prática delirante que acontecia nos cinemas, nos bares, nas praças, nas casas.
Frente ao contemporâneo, nenhum Buñuel mais daria conta de delatar os horrores naturalizados e institucionalizados cotidianamente sob nossos olhos opacos, desconstruir ou ao menos extirpar um milímetro o foco de selfs, a vertigem da sociedade do espetáculo e do voyeurismo, fazer retroceder o esgarçamento e a derrocada da vida.
Esse nosso uivo surrealista, se assim quiserem, será capaz de instaurar ou reinstaurar um maravilhoso, com a destruição triunfante de tudo? Não sei se meus poemas são lamentos ou manifestos.
Fernando Andrade: Teu erotismo nunca é literal, vem muito figuradamente, em torções de sentidos, polissemia, abstrato. Fale mais dessa linha pulsional.
Beth Brait Alvim: Não se trata de uma linha decidida logicamente. Como tenho tentado exprimir, as várias décadas de convívio com Willer, um pouco menos com Piva e com seus seguidores, o aprofundamento nas leituras de poetas mestres, me impulsionaram à prática do intuitivo, no deixar-me tomar pelo estado poético, em liberdade total, ao delírio que a poesia pode instaurar em nossas vidas. Um delírio urgente, necessário. O mesmo com o erótico em meus poemas. O erótico, por sua própria natureza, contém a sedução, diferentemente da pornografia. Em “A sedução”, de Baudrillard, encontramos aspectos relevantes sobre o tema. Se o poema for literal, no meu caso, não me seduzirá. Poderá me chocar ou problematizar algo significativo, mas não me seduzir. E o que seduz tem encanto, que acredito ser uma premência dos tempos atuais. Ora, um tema bastante clamado há pouco tempo, não foi o reencantamento do mundo?
Sobre o Livro: MUROS, BUNKERS E BORDÉIS
Autor: ALVIM, BETH BRAIT
Editora: REFORMATORIO
O que pode a poesia diante do tempo e da memória? O que pode a poesia diante do espanto da Vida de uma vida e do Tempo de todos os tempos que sempre nos encontra em algum lugar anywhere out of the world? Longa e digna é a trajetória da poeta Beth Alvim que a cada novo livro realiza uma evocação perene desta e de outras questões do viver por dentro e por escrito o mundo onde nem sempre cabem as poetas e os poetas e essa inadequação parece ser uma virtude, a virtude de fazer de um não-lugar um ponto de acesso ao mundo. Os poemas de Beth Alvim são fiéis ao tempo dos grandes movimentos poéticos de reivindicação de transformações da exterioridade que chamamos de sociedade através da percepção fusional da interioridade (do corpo presente). Poetas não perdem o corpo de vista. Ainda é o tempo das grandes reivindicações, ainda é tempo das grandes perguntas feitas pelos poemas sobre o amor e outras magias. Ainda temos tempo. Este livro prova isso.
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Sobre a Autora
Beth Brait Alvim é Mestre pelo PROLAM-USP. Escritora, poeta e atriz premiada por sua poesia e por sua ação cultural, participou de eventos literários no Brasil, México, Cuba, Colômbia, Itália, Espanha e Portugal. Recebeu o Prêmio da ABL pela Antologia de Dramaturgia Vladimir Maiakoviski. É autora de “Mitos e ritos”, “Visões do medo” (Prêmio PAC São Paulo), “A febre da mariposa”, “A noite e o meio”, “Poemas Selvagens: convulsões para os Cem anos do Surrealismo”, entre outros.
