Paixão pela leitura!

“A maior queda ou o menino que perdeu a infância” – Conto de Andrey Jandson

O Menino respirava o ar da roça como se sua vida fosse ser infância eterna. A manhã se fantasiava de um cheiro forte de café que quase se fixava nos tijolos, com a Avó filtrando-o no coador de pano, deixando a casa acordada e pronta para um dia novo e agradável. O Pai havia saído para a caçada e só retornaria depois de muito tempo. Deus sabe como funcionam as vidas no sertão: um bicho come o outro, que come outro, que mata outro, que maltrata outro, que devora outro, que se vê no outro…

Então, o Menino corria com os pés descalços em atrito com o chão ainda quente. Quando cruzou a sala viu a Avó de joelhos em frente ao altar da santinha, com uma vela acesa e rodeada de pequenos quadros com diversos santos. Rezava em sibilos, ela que ultimamente andava fraca e doente. O Menino se perguntava quantas orações é preciso para ser atendido? O céu é tão distante, mas o inferno está logo ali. O ouvido dos santos deve ser muito bom, pensou, já que não conseguia distinguir o que a Avó dizia na oração. Na sua própria reza interna pediu pra ser grande – masculino e brutal, queria olhar as coisas de cima.

Numa imitação ao Pai, pegou a baladeira e começou sua própria caçada. Como a vida se transforma depois do impacto da mudança? Uma árvore tinha se transformado em sua baladeira, o elástico vinha de algum lugar, e ele ainda não sabia de nada. Avistou de longe uma borboleta amarela e bonita como a cor do girassol, talvez atingir uma coisinha tão pequena não fosse um problema. Será que essa pequenez insignificante podia sentir a dor de uma pedrada? Insignificante não, porque o amarelo é ardente e o bater das asas anuncia vivacidade. Se segurasse a borboleta nas mãos conseguiria sentir o bater das asas, a explosão amarelada, sua mão ficaria suja e se fechasse o punho ia parecer um pequi. Queria matar a borboleta pelo poder, e, querendo que algo tão vivo fosse seu, descobria sem saber a gênese do egoísmo.

Com algumas pedrinhas que pesavam no bolso do seu short ele armou a baladeira, puxou o elástico e atirou com maldosa concentração no rumo da borboletinha. Mas ela era zombeteira, dançava pelo ar provocando-o com sua liberdade mínima e expansiva, desenhando traços graciosos no ar, fazendo-o arder em decepção. O Menino corria atrás dela como sucumbindo a uma armadilha, aproximando-se do mato, onde a borboleta adentrou em escapada. Será que devo? Vó e Pai dizem sempre pra eu não ir muito longe. Talvez fosse hora de pensar sozinho – desejou a ruptura. Não vou longe, só pegar a desgraçada e voltar. O vento o atingiu pelas costas, entrando no mato fazendo as folhas se debaterem num chamado ruidoso, e o sol se dispunha iluminando o verde com força de queimadura. O Menino seguiu o caminho aberto na mata, uma estradinha estreita feita para que as pessoas pudessem ir buscar água no rio ou se encaminhar para a casa de outras pessoas. Era um vestígio de que em meio ao inferno existia vida humana.

Tentava armar a baladeira com as pedras, mas estas caíam de suas mãos. Já irado e impaciente, tão hipnotizado na perseguição, disparou mata adentro muito além da estrada, seguindo o risco amarelo que dava voltas, pulando por troncos e desviando de galhos. Já estava quase se cansando quando atingiu a borboleta num tiro certeiro e mal sentiu o impacto da própria queda. Atingiu o chão duro como alguém cairia no fundo de uma alma já adulta e pesada. Sua cabeça doía, sentia uma tontura amarga e só conseguia ver um borrado verde e azul, que pareciam as cores do mundo recaindo sobre seus olhos. As cores agora tinham um peso insuportável.

Ele sentiu um vazio descendo pela garganta, soprando-o por dentro. Uma amálgama de saudade e medo. Sua felicidade aumentava junto com a tristeza, ambas queimando em diferentes limites do seu corpo, como um fluido movendo-se com a aspereza entrando em contato com a expansão, os pelos arrepiados, um inverno além do compreensível. Esqueceu-se de quem acordava sendo. Sentia saudade de quê, então? Dele.

Havia caído num buraco quadrangular, maior que Ele em comprimento e largura, pois não era muito fundo. Conseguia ver as raízes das árvores e teve uma estranha identificação com elas. Depois de ser raiz o que tudo ia virar? Podia ser uma mata inteira, podia ser uma baladeira, podia ser… grande. As árvores eram enormes e as raízes serpenteando por entre a aridez do solo apontavam um segredo descoberto. O buraco estava quase congelando, então Ele se levantou para sair, mas suas pernas tremiam e sua boca estava seca.

Sentia-se farto como quem tem uma longa vida acumulada nas costas, e com um doce saudosismo de um tempo que não sabia possuir. Impedido de voltar seguiria em frente.

Ele saiu do buraco e tremeu de susto ao se deparar com um ser. Tinha uma barba enorme que escondia metade do rosto, cabelos longos ressecados e arrepiados que batiam nos ombros, não usava roupa pois tinha pelos que lhe cobriam cada pedaço da pele. Ele não teria identificado que se tratava de um homem se não tivesse percebido seus olhos cor de mel, cansados como os seus próprios, e com uma alegria miúda de lealdade. O homem era meio cachorro: andava lento em quatro patas, do meio da pelugem do rosto surgiu uma língua salivando e respirando forte, numa boca onde era possível ver dentes afiados e branquíssimos. Os braços longos e magros se estendiam em mãos humanas e ossudas, cobertas de uma casca grossa. Abanava o rabinho que se esticava de suas costas, num contentamento óbvio pelo contato com Ele. Tentou se aproximar d’Ele, mas este voltou pra trás sem saber o que fazer, aquele ser o assustava com familiaridade e estranheza.

Ele era um bicho quase. Quase humano, quase animal. Será?

Penso comigo que o martírio aconteceu num lugar sagrado, um lugar onde ainda havia um jovem que acreditava em anjo da guarda. Mas quando Ele viu aquele Homem Cachorro nos olhos, soube que o sagrado estava tão mais perto do ato de sentir do que o de projetar um paraíso. Ele não sabia de tudo que estava escrito, mas sentiu tudo como uma agulha a lhe atravessar o espírito – se algum dia eu me ajoelhei e pedi perdão, não foi por amor.

O Homem Cachorro fez um som abafado, soava como um latido anunciando a noite. Então a noite aconteceu e escureceu sem que Ele sentisse notável diferença no tempo. O medo não se fez abstrato, estava em tudo que existia. O tempo se desfez, Ele agora não sabia se tampouco era tão humano ou quase tão bicho como aquele que agora uivava para a lua nova que se iluminava no céu. O Ele também começou a observar a lua e sentiu uma conexão de natureza com o Homem Cachorro.

Ele era um caçador? Se fosse já o teria devorado.

Não era um confronto, aquele ser lhe oferecia apenas companhia, aproximando-se dele com um olhar doce de redenção, quase anulando o clima denso que circundava a mata. Esfregou as mãos em seu pescoço, e o Homem Cachorro retribuiu o carinho lambendo suas mãos.

E agora tenho a noite e um companheiro, o que fazer? Seguir adiante, buscar a grandeza e ardência das raízes e das folhas, do que há além do paraíso óbvio da claridade. Ele começou a andar com o Homem Cachorro que o seguia, às vezes na frente, energético e satisfeito, às vezes atrás, preguiçoso e submisso. Mas nunca deixou de estar acordado.

Ouviu-se um assovio soturno e longínquo que o Homem Cachorro retrucou com um uivo baixo como se a resposta fosse despedida. O Ele apenas ignorou, pois esforçava-se em descobrir quem era tentando capturar essa dimensão da lembrança: as imagens e as palavras conectadas numa narrativa de vida. Porém tudo lhe escapava como se ele olhasse um espelho sem reflexo só silêncio. O mundo foi tomado com a queda ou Ele se afastou tanto a ponto de não restar nem memória? Seu desespero era profundo e sem raiz. Só andava mata adentro, nem buscando saída ou fuga, apenas algum sinal de vida.

As árvores, ele sentiu, estavam vivas e observavam cada passo que ele dava, falavam entre si numa língua que ele não compreendia. O Homem Cachorro às vezes parava e olhava pra algumas delas como se compreendesse. O Ele invejava essa percepção de se comunicar com o todo, não sabia de nada, mas não seria um problema também saber demais? Seus ombros estavam curvados e os olhos atentos a qualquer movimento.

Um fruto caiu nos seus pés, verde e com casca grossa e úmida. O Homem Cachorro tratou de agarrar com os dentes afiados, devorando metade com satisfação, primeiro passando a língua pra sentir o sabor e depois engolindo-a com casca e tudo. Já Ele, segurou a fruta desconfiado. O centro era rosa e com sementinhas pequenas e pretas, passou a língua para sentir o gosto e devorou. Não tinha muito sabor, mas seu corpo tomava um novo preenchimento. Sentiu o peso de saber demais, sem compreender o conhecimento em si.

A fruta em vez de alimentar o deixou mais faminto, alucinado por mais. Tanto que ao perceber que no chão havia apenas folhas secas, Ele começou a escalar a árvore para pegar mais frutos, com muita dificuldade. O Homem Cachorro, parecendo zoar com a cara dele, subiu nos galhos leve e debochado. Ao atingir o topo começou a latir com uma força de pulmão inchado. Ele, ao perceber o que sucedeu, subiu a árvore com mais garra até atingir o topo, e junto com o Homem Cachorro, uivaram juntos em uníssono.

O topo da árvore estava repleto daqueles frutos, Ele agarrou um e repartiu, mas o meio estava verde e azedo demais, sabor de dez limões. O Homem Cachorro fez um grunhido como se estivesse rindo. Ele abriu mais cinco, dez, vinte frutos e sua fome enlouquecida aumentava. Mas todos os frutos estavam verdes. Desceu a árvore escorregando entre os galhos com um movimento de serpente e ao pisar no chão sentiu um morno calor na terra, foi quando outro assovio abrilhantou-se nos ouvidos, agora firme, imponente, e mais perto, perto, perto…

O desconhecido se aproximava e aquele mato sem caminho ou luz era um trajeto nauseante. O Homem Cachorro percebeu o perigo no tom do assovio, se energizou como se a juventude lhe tomasse conta do corpo. Agora ele era o guia. O ser peludo e estranho conseguia além de tudo ver a pureza das coisas, mas não tinha nada puro pra ver.

Era uma casa abandonada. Dava pra ver os tijolos espalhados em algumas paredes demolidas, as portas abertas mostrando as salas vazias, o mato tomando conta, os cactos ao redor rígidos como guardiões. Ele enxergava a casa no meio daquele escuro, assim como o Homem Cachorro. Os assovios cessaram, haviam chegado muito tarde. Mesmo com uma coragem instável, se aproximou com cautela, pois a casa era hipnotizante e chamativa. Tinha uma profundidade de abismo.

Pisou em espinhos, provavelmente dos cactos, o pé sangrava sem dor. O peso do conhecimento o alienara da dor dos espinhos. O Homem Cachorro parecia tenso e mais angustiado do que antes.

O Homem Cachorro parou na porta, paralisado. Olhou para Ele e os olhos pareciam mais amarelos do que antes, em evidência sufocante no meio do pelo. O vento entrava pela porta da casa como se conduzisse à perdição, ao próprio desconhecido. O Ele já não sabia de si e não sabia do Homem Cachorro, e não sabia de nada, só sentia o peso. Não tinha nada a perder.

Ele entrou na casa e uma corrente gélida arrepiou os pelos de seu corpo, ele ouvia respingar de goteiras em um dos cantos, fazia ecos cruzando o silêncio. Silêncio que tornava ele pequeno e alargava a casa. Tudo era muito longo, a perda era um mistério e o escuro era uma terra de bichos humanos e severos castigos. Suas mãos segurariam um dia o objeto da morte com uma tranquilidade sombria, despedaçando no chão o adeus.

Sentiu suas costas arderem como se tivesse le vado chicotadas de uma mão que surgia do escuro. As chicotadas só vieram porque ele se redescobriu humano e fraco, um pecado, se deparar com o escuro da sua fraqueza. Ele estava parado, mas a estrutura parecia rodopiar ao seu redor. Se aproximou da parede para se segurar e um cheiro forte de café estava grudado nos tijolos. Então, num clarão tortuoso, a casa tremeu. Ele sabia de si e sabia sobre o movimento de engrandecer, ele sabia da sua saudade e sabia de seu corpo, ele sabia das cores e sabia da borboleta. Ele lembrou.

O estremecimento fazia de tudo uma transformação, o Homem Cachorro farejou o perigo e mesmo sem poder, entrou na casa e pulou em cima do Rapaz, lançando-o ao chão, no exato momento da derrapada. No momento em que o teto da casa inteira desabou sobre os dois.

Não havia distinção da matéria, nos escombros não se sabia o que era memória, homem, animal ou infância. Talvez, tudo no fim fosse essa confusão entre beleza e entulhos. Mas a desistência não era um sinal, a esperança ainda tinha efeito. Os dois surgiram gloriosos dos escombros, o Rapaz puxando o Homem Cachorro, ou o Homem Cachorro puxando o Rapaz. Ele chorou, não apenas pela dor das feridas, mas sabia que seu companheiro iria partir, pois o assovio se aproximava estourando em seus ouvidos.

Segurava-o nos braços, quando se surpreendeu com sua voz. Voz humana.

Não te preocupes comigo. Eu renascerei. Quando a noite abrandar, tu esquecerás de tudo o que viu, as angústias serão enterradas em túmulos e nos mesmos campos você deve plantar novas sementes. Agora vá. Corra!

O Rapaz o repousou nos escombros, e por instinto sabia o caminho de volta. Estava preso, sim, a mata e sua noite violenta o haviam rendido, mas agora ele estava liberto e consciente.

No seu trajeto de volta, o Rapaz não ouviu barulho algum, de vento batendo na moita ou carregando um assovio perdido, só ouviu o silêncio e a dor que se esvaia numa veia do depois para o antes. A cada passo a terra esquentava, seus pés eram firmes mesmo no chamuscar do encontro secreto com seu lado animal. A natureza parecia angustiada, o céu tinha uma distância profunda.

O Rapaz foi atingido por um baque, uma porrada forte no peito. O tempo e suas mãos pesadas.

A claridade surgiu numa velocidade de piscar, quando ele abriu os olhos e se viu de novo deitado no buraco quadrangular. Não era o mesmo de antes, esse era menor, ou talvez ele estivesse maior. A manhã ressurgiu trazendo de volta sua leveza, ele lembrava vagamente de suas raízes mortificadas, mas sentiu o cheiro de terra nova e adubada.

Como se tivesse sido cuspido da mata de volta para o dia, ele correu desesperado cruzando a roça de seu pai – ela toda diferente, com outra arquitetura, as árvores maiores, os feijões grandes e suculentos, mas os cercados todos secos de uma madeira carcomida. Adentrou em desespero pela porta da cozinha como se sentisse o cheiro da infância lá dentro.

Recuperou os seus sentidos, a sua vivacidade, assassinou sua doença mais obscura. A cozinha desarrumada indicava que a Avó estava há muito ausente. Logo o Rapaz notou a figura do Pai andando ao longe, cruzando a roça com uma tranquilidade sombria segurando sua espingarda ainda quente, e teve consciência do que aquele homem tinha feito. O Pai chegou pedindo que ele fizesse café com uma voz rouca e envelhecida, corroída por amargura e cigarro de anos e anos. Depois ficou em silêncio, observando o aspecto perturbado do Rapaz com um olhar tenro e quente, com seus olhos inflamados. Tentou dar no seu filho um abraço que ele prontamente recusou. A maior queda é a maldição do tempo perdido. Eram ambos homens e grandes. Solitários.

Autor

  • Andrey Jandson é um escritor e diretor piauiense, formado em teatro pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Encontrou no meio artístico de Belém a oportunidade de buscar a experimentação, se aventurando em diversos campos do teatro e audiovisual. Atualmente é diretor e roteirista do filme “Inquilino” e pesquisador no campo da escrita, onde investiga uma metodologia nomeada “Poética dos Cristais”, baseada nas fragmentações da vivência do escritor.

Compartilhe nas redes sociais.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Também podes Ler

”Para que acalme os peixes no aquário” – A poesia de Elke Lubitz

Descrevi o silêncio que guardei nos teus olhos Pupilas de seda revirando a lua…

“Boca de Cena” poemas do belo livro de Alfredo Rossetti

Meu pai sentenciou num dia de riso De largueza cínica que sou do contra: (vide todos estes versos) Tomo banho em águas de rios repassadas. Nas tardes sento em nuvens por aí,

Escuta o meu coração…

Escuta o meu coração. Não essa víscera que pulsa …