Em memória do meu grande amigo, MAOMA — Marquezinho Octávio Mafunga, o Zaratustra de Idugo.
Que encontre, na eternidade, sua própria superação e sentido, inspirado pelo espírito de Zaratustra, tão poderosamente descrito por Nietzsche.
A avó Quiroza pousou na varanda o embrulho de capulana que trazia da sua longa viagem da Ilha de Idugo, a de Maquival, para a cidade de Maputo; e foi conduzida num corredor, — com os pés descalços, respeitando sempre o brilho e a lisura do soalho—, até à sala de estar.

— Papá?
— Papá foi comprar “acessórios”. . .
— Asso. . . O quê?
— Foi comprar pedaços.— simplificou a neta, mas avó Quiroza não entendeu nada:
— Pedaços. . . Pedaços. . .— uma nuvem de dúvidas pairava nos pensamentos da idosa. — Pedaços de o quê?
— Frango! — respondeu a neta, — Pedaços de frango.
— Como assim? Frango é galinha, não é?
— Mais ao menos. — respondeu Luna, escondendo um riso no canto dos lábios.
— Mandito foi comprar pedaços de galinha. . . ou a galinha toda? Agora vende-se galinha em pedaços?
Não houve tempo para que Luna respondesse as sucessivas perguntas da avó Quiroza, pois dois veículos buzinavam intermitentemente pelo portão da casa, que Luna saiu da sala, às pressas, correndo com a sua pasta até ao pátio, para abrir o portão. Ali estava o carro do seu pai Mandito, roncando feito tractor, prestes a entrar, e o “sempre apressado” autocarro escolar que pouco tempo depois a levou até à escola.
A avó Quiroza, que era uma grande criadora e vendedeira de patos e galinhas na Ilha de Idugo pelos fins dos anos noventa, e que, com tal negócio, e o da venda de côcos, sustentara os estudos do seus dois filhos, Mandito e Dorito, até ao Ensino Superior, não estava acreditando ao ouvir da neta esta crua realidade, porque lá na Ilha de Idugo, mesmo o mais pobre dos pobres tinha o privilégio de comprar galinha inteira,— ainda que fosse, na sua grande maioria, em dias festivos ou comemorativos—, não sendo necessário comprá-la em “pedaços”.
Quiroza, ocupada em actividades agrícolas e criação avícola, nunca imaginou que alguém pudesse vender ou comprar carne de galinha em pedacinhos. Ela só acreditaria vendo. Mas, momentos depois, quando o Mandito entrou pela cozinha, com alguns dos ditos “acessórios”,— as famosas patinhas—, a avó Quiroza, curiosa, foi logo ao seu encontro, espreitou com tal atrevimento no saco plástico, e admirou:
— Yu! — gritou a avó Quiroza.— Chééé! Não acredito no que estou vendo!
A verdade era que, não importava se ela acreditava ou não, as patinhas, os pescoço e os rabinhos de frango estavam ali, — faltando as asinhas, e coxinhas—, no saco plástico, bem fresquinhos. Ela revirou os “acessórios”, como se estivesse procurando por algo perdido neles, mas as patinhas estavam ali, naqueles gestos característicos, como se estivessem prontos para um golpe de Kung Fu. A avó Quiroza, avaliando a enorme quantidade do produto no saco plástico, ainda perguntou:
— Tudo isso é para comerem hoje?
— Comermos. — retificou o Mandito, seu filho.— Vamos comer patinhas, ou rabinhos . . . O que quiser!
— Vamos comer? Eu, não. Comam vocês. E onde estão as outras partes? O fígado, a cabeça, a coxa . . enfim, onde está a própria galinha?
— Fala-se coxinha.— retificou Mandito.
— Ah! Coxa ou coxinha, a mim já não me importa. . .
A avó Quiroza disse que apesar dos seus dois filhos, Mandito e Dorito, os terem abandonado, mesmo depois de tantos esforços e sacrifícios para as suas formações, a sua casa era bem vinda para eles, e que ela nunca os desalojou do seu coração e que para sempre seriam seus filhos, e que qualquer ajuda que eles quisessem podiam pedir à vontade, e que, segundo ela, aquela humilhação de vida citadina que o Mandito estava passando, de viver de casa em casa de aluguel, e péssimas condições de alimentação devia ter fim, afinal, era para isso que ela se sacrificara tanto: para acabar com a pobreza.
— Pensando bem, vocês novos doutores é que estão a aumentar a pobreza neste país. No meu tempo. . .— a avó Quiroza parou por uns segundos, como se convocasse memórias, ou como se medisse o peso as palavras.— No meu tempo de juventude, quando contavamos doutores pelos dedos, não éramos tão pobres, assim. E nem os doutores eram tão pobres quanto deprimidos como hoje. . .
Mandito ouvia a mãe, imóvel e mudo, como se carregasse uma culpa. Quiroza, porém, não se conteve e continuou a falar, relembrando as dificuldades e sacrifícios que havia enfrentado para criá-los, e suas palavras a levaram às lágrimas, e Mandito se emocionou também. Mas antes que as lágrimas evaporassem, a esposa de Mandito, Loucaina Rosa, chegou, radiante e perfumada, iluminando o ambiente, mas ficou espantada ao ver a sua sogra ali, e o marido soluçando em choros:
— O que se passa, afinal? Alguém morreu lá na zona?
Avó Quiroza olhou ao Mandito, apelando que este respondesse a esposa Loucaina Rosa. Mas um silêncio pairou entre eles, até que Mandito aproximou-se de Loucaina Rosa e pediu que ela preparasse um almoço, de xima e nyewe (o famoso tseke, ou seja, amaranto),— que até o Governo Central incentivara o seu consumo pelo rico e “aclamado” valor nutricional. Mandito orientou desse modo que Loucaina Rosa deixasse no congelador os famosos “acessórios”, feito que ela estranhou o pedido:
— Você comprou as patinhas?
— Sim, comprou!— Foi Quiroza quem respondeu, com voz meio trémula, soluçando, tentando limpar as lágrimas com a capulana que usava. — Comprou cheio. Estão aí no plástico.
Loucaina Rosa ficou ainda mais confusa, e apelou, em gesto, que o marido explicasse o que estava acontecendo, porque tudo estava nebuloso, começando pelo inexplicado choro:
— É que mamã não come patinhas. . . Ela. . . Ela. . . — Mandito gaguejava na fala e no pensamento.— Ela tem uma doença chamada. . .
— Não minta!— retificou Quiroza. — Eu estou bem saudável. Não como pé de galinha. Só isso.
— Come outras partes? Pescoço, asinha, ou rabinho?— perguntou Loucaina Rosa à sogra.
— Chiii! Deus me livre! Rabo de galinha, não! Prefiro comer esse capim. . . esse nyewe mesmo.— protestou avó Quiroza, e prosseguiu em falas, mas com uma voz mais firme:
— Você Mandito. . . não disseste que eras Doutor?!
— Sim!
— Você que é médico, fica bem à vontade comendo rabinho de frango?
Mandito retificou a mãe dizendo que ele não era médico, mas sim Licenciado em Ensino de Biologia. Mas ela insistiu:
— Você é Doutor ou Licenciado?
— Quer dizer. . .
Mandito mergulhou-se numa longa explicação, tentando situar a avó Quiroza sobre o seu grau académico, e para valorizar os sacrifícios que ela fizera para ele, enquanto estudante do Ensino Médio e Universitário, ele até fez questão de mencionar os diversos diplomas de mérito e as premiações recebidas, mas ela multiplicou tudo por zero:
— Piorou! — Comentou a avó Quiroza. — Para alguém que estudou muito como você, e é inteligente, não se sente mal comendo rabinho de galinha? Porque isso de patinhas e rabinhos, para mim, parece . . . parece resto, pronto, falei. Onde é que guardou a inteligência?
Avó Quiroza puxou a sua nora Loucaina Rosa para um recanto, na cozinha, para dar-lhe uns conselhos sobre finanças e economia doméstica, para que saíssem daquela situação inaceitável, segundo ela, de tal forma que a conversa naquele recanto era amigável, primeiramente, mas logo depois as vozes começaram a soar azedas:
— É assim. . . Calma filha!
— Fala com ele. . . Fala com ele! — Loucaina Rosa apontou ao Mandito como se fosse um criminoso na esquadra, — Se existe aqui quem precisa de conselhos é ele! Pergunta a ele para onde leva o dinheiro. . . Nós aqui. . .
— Calma! Calma! Calma!
Quanto mais Loucaina Rosa era acalmada pela sogra, mais ela agitava-se. Ela explodia vigorosa feito lume na frigideira, e foram nessas explosões que as revelações começaram a chover. Mas Mandito permaneceu calmo e sereno, como um Santo, no canto de um dos sofás da sala. No entanto, a um dado momento entra abruptamente na sala a avó Quiroza e questiona ao filho:
— Quem é Eulália?
— Quem?— Mandito respondeu perguntando à sua mãe, como se não tivesse ouvido. A tranquilidade de Mandito era tão descomunal e comparada a água da cisterna, mas fervia um furacão dentro de si. No entanto, não tendo a avó Quiroza uma resposta satisfatória, afastou a mesinha de vidro situada entre ela e Mandito, e voltou a fazer a mesma pergunta, mas foi Loucaina Rosa quem respondeu:
— Já disse. . . Eulália é a namorada! Aquela (. . . ) — O que veio a seguir foram adjectivos, e mais adjectivos: aqueles que nenhuma mulher gostaria de ser atribuída.
— Então, para além de doutor, és também licenciado nas saias, não é? Na nossa família não existe esta profissão de ser mulherengo.
Sucedia, porém, que Mandito efectuara vários cortes nas despesas domésticas, justificando-os com os gastos em combustível (que estava muito caro), para o carro de “segunda-mão” que acabara de importar do Japão, e que também tinha de cuidar da mãe, — a mesma avó Quiroza—, que, segundo ele, estava doente, tanto é que já havia feito várias viagens para visitá-la, inclusive pedira outros empréstimos bancários, que um deles aplicara para a construção da casa da mãe, lá no campo, na Ilha de Idugo, mas era tudo mentira, porque, algum tempo depois, Loucaina Rosa, dotada de instinto investigativo, descobriu a verdade, que ele andava em namoros com várias mulheres, e que duas das quais eram “quase oficiais”: a Eulália Lilás, a tal bandida gospel (ou fingida)— era assim como Loucaina Rosa a chamava—, e a Jéssica, a dita mulher com coração à “Prova de amor”. Jéssica era aquela mulher com estética invejável, cujo nome era tão comentado quanto famoso na praça que converteu-se em adjetivo, significando alguém cujo amor tinha um preço. Não obstante, como se não bastasse, Mandito alimentava com imensa sede o vício de beber, e a avó Quiroza, ainda parada diante dele, perguntou-o, ironicamente:
— O que você quer ser quando crescer?
A resposta desta pergunta foi um longo silêncio, mas a avó Quiroza continuou falando:
— Já faz tempo que trabalhas como médico, e. . .
— Eu não sou médico, mamã. . . — interviu Mandito numa voz frouxa.
— Ah! Agora negas que és doutor, não é? Devias te organizar. . .
Avó Quiroza aconselhou-o que devia ter uma casa própria, mesmo que fosse de madeira e zinco, e que mais tarde, com o dinheiro das poupanças, construísse uma casa condigna, sem no entanto passar o que ela chamou de “humilhação alimentar”, comendo rabinhos e patinhas.
A avó Quiroza chamou Loucaina Rosa com um gesto e, tendo ela se aproximado, segurou-a pelo braço e foram sentar-se no mesmo sofá onde Mandito tinha sentado e, segurando as mãos dos dois, lado a lado, disse:
— Eu posso ajudar-vos, mas. . . (virando-se para Mandito) você tem que deixar essa brincadeira de ser mulherengo, e esse espírito de “tambor furado” diante de bebidas. E. . . (virando-se para Loucaina Rosa) trago galinhas e patos para vocês criarem para venda e para o consumo. Patos crescem muito rápido.
— Não vai dar certo, mãe!— protestou Loucaina Rosa.— Patos. . . ! — pronunciou com estranheza o nome desta ave que, traduzindo o seu rosto, ela preferia comer os rabinhos de frango aos patos.— Patos se comportam mal. . . Cagam em tudo que é canto. . .
— Então o que é certo é comerem asinhas, patinhas, e rabinhos ; enfim, frango em sílabas! Deus me livre! Como é que vocês vivem aqui na cidade? Quase tudo compram aos pedaços: frango, abóbora, côco. . . E vocês estão felizes com este tipo de pobreza. Organize-se, meu filho! Organize-se!
— Estou a espera da minha nomeação como director. . .
— Director dos mulherengos? — interrompeu a avó Quiroza: — Podes até ser nomeado como Ministro das Finanças mas, se não mudares de atitude, a nomeação servirá apenas para aumentar amantes, e comprares as melhores bebidas da praça. . . Vais continuar pobre a comer coxinhas ou rabinhos pensando que estás nos Estados Unidos de América.
Octaviano Joba
¹— Ilha de Idugo— Existem na Província da Zambézia (em Moçambique) duas ilhas homónimas: Ilha de Idugo, a do Posto Administrativo de Maquival, no distrito de Quelimane; e Ilha de Idugo, a do Posto Administrativo de Bajone, no distrito de Mocubela. A ilha retratada no texto é a de Maquival.
²— Pasta espessa que resulta da cozedura da farinha de milho ou de mandioca, muito usada na alimentação moçambicana.
³— expressão em língua chuabo, o mesmo que tseke, ou seja, amaranto.
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