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Adalgisa Nery – Poemas Evolução, Angústia, A razão de eu me gostar…

Retrato de Adalgisa Nery, escritora e poeta brasileira
Adalgisa Nery

Evolução

Depois da vida outras mortes viverão Trazendo o pólen dos silêncios insepultos Nos ventos desatados pelos prantos. Depois do amor outros cansaços se levantarão Marcando as carnes gretadas pelo tédio Na aparência de satisfação. Depois da virgindade outros mercados surgirão Vendendo os corpos fecundados Sob o prazer, o asco e a exaustão. Depois dos túmulos ficará o pó dos ossos Cobrindo as imagens mutiladas Pela consciência insone dos enfermos. Depois da colheita outros frutos apodrecerão. Outros rebanhos fugirão das pestes E novas águas brotarão do solo novo Removendo os universos tombados. Depois do sono agitado da memória Outras lembranças vestirão outros sentidos Com o manto insistente do remorso E com a palavra fatal da solidão. Depois da invasão da alma outros massacres se repetirão Em destinos de sangue e maldição Cultivados em rancores dormidos, Depois da morte outras vidas surgirão Carregando consciências em angústia Corpos de amores saturados Olhos vazados em dores ancestrais Vencendo os múltiplos limites do tempo Que levam aos abismos das mortes reais, Depois do vácuo Outras vidas mortas nascerão.

Guerreira

No espaço que tem a medida do eterno Despojei o meu corpo de todas as reservas humanas E joguei a minha alma Na vala comum do Universo. Dei meu cantos às sombras dispersas E o meu pranto à terra morta. Ladeei risos, rolei montanhas, Mutilei-me no acre silêncio E anulei as graduações do meu pensamento, Enxotei o espectro da minha curiosidade Na vida dos meus sentidos, Interceptei aos meus ouvidos O regresso da minha própria voz, Levei o meu raciocínio Ao abismo tenebroso do ceticismo E afoguei o meu espírito No volume surdo das sufocações sem causa. Contemplo agora a minha dissecação, A nudez da minha vontade inerte, A chaga profunda nas carnes dos meus sonhos E a dolorosa morte sem continuidade Que pisa lentamente as minhas frágeis recordações. Descarnada e decomposta, Largada no despudor Pronta estou Para prostituir-me com todos os acontecimentos.
***

Pensamento

Com o cansaço frio e a dor mansa Tenho nos olhos uma solidão crescente Há um som de palavras na distância Dando à vida uma treva permanente. Escondo-me da paisagem existente, Das horas gravadas na memória, Penso às vezes que sou forma ilusória Arrastando esta alma tão doente. E concentrada em medos e horrores Deu ao pensamento outra distância Sob as lágrimas do pranto que ainda posso. É que dentro de todos os destinos Aturdida por dores diferente Sou aquela que agora é pó e ossos Sobre tudo que fui antigamente.

A imprecavida

Contemplei a véspera da minha vida E não fixei o mistério que rondava diante o amor Envolto na túnica da morte. Meditei sobre as distâncias E não senti o tempo recolhendo Meus ímpetos selvagens E as palavras sem definição. Olhei as rosas em botão Mas esqueci de preparar a memória Para o instante supremo e justo Do seu perfume. Aceitei a alegria da liberdade Sem pensar nos grilhões da minha concepção. Desejei o universo Sem prever a luz mágica do destino Que me devolveria ao desespero. Procurei as multidões Sem saber que mergulhava na mais densa das solidões.
***

Acalanto

Oh se a vaga música Ouvida no pensamento caído Consolar pudesse A nostalgia do gesto perdido, Se o tremor dessa canção sutil Despertasse o olhar às paisagens Sem que passar pudesse A lamentação das velhas imagens, Se ao menos essa cantiga distante Que mata a palavra sugada Pelo tédio e a solidão Ao corpo deixasse O silêncio sem dimensão, Eu diria que o meu destino É rio calmo e sereno Contornando sem segredos Um frágil e pequeno.

Aspiração

Antes que vingue outra esperança Quero as sombras do branco espesso. Antes que mais uma insônia se cumpra Quero o torpor no abismo indecifrável Do espírito amortalhado. Antes que o pensamento acorde E descubra os espaços petrificados, Quero narcotizar-me sem sonhos E deitar-me no mundo sem sombras, Sem palavras nem gestos. Antes que alguma crença me recolha, Antes que eu entenda o obscuro, Antes que o sensível me assalte, Antes que eu distinga na lonjura A morte da estrela cintilante, O êxtase da solidão vertical, Quero ser coisa sem motivo Entregue aos ventos sem destino.
***

A razão de eu me gostar

Eu gosto da minha forma no mundo Porque representa uma fagulha, Porque mostra um instante doce e perverso Da ideia, do gesto e da realização De Deus no Universo. Eu gosto dos erros que pratico Porque vejo a pureza colocada na minha essência Desde o Início Lutar contra todo o mal que em mim existe E ser tão maior, que sobre a minha miséria Ela ainda persiste Eu gosto de espiar O meu olho direito Ver o esquerdo chorar, De sentir a minha garganta se enrolar de dor Porque em troca de tanta cousa dolorosa Ele construiu em mim uma cousa gloriosa, Que é o amor.
Poemas de:

Adalgisa Nery

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Foto do autor

Adalgisa Maria Feliciana Noel Cancela Ferreira, nasceu no Rio de Janeiro, em 29 de outubro de 1905. Poeta e jornalista, foi uma importante voz feminina na poesia brasileira, fazendo parte das gerações modernistas do país. Com apenas 16 anos casou-se com o pintor Ismael Nery, de quem adotou o sobrenome, e teve dois filhos. Após a morte do marido, em 1934, passou a trabalhar em jornais e também iniciou carreira política, sendo eleita deputada por três vezes, no entanto, acabou cassada em 1969. A partir da década 70 passou a apresentar fortes traços de depressão, isolou-se das pessoas, ficou pobre e viveu de favor na casa do amigo Flávio Cavalcanti, um dos mais importantes comunicadores da época, em Petrópolis, região serrana do Rio. Em relação à sua obra literária, a maior parte de seus escritos aconteceram entre as décadas de 30 e 50. Nesse período, mostrava um pensar profundo sobre as questões da vida e da morte, o ser mulher, e as relações com Deus, num campo lúdico, filosófico e extremamente sentimental. Em 1977, sofreu um acidente vascular cerebral e ficou afásica e hemiplégica. Faleceu em 07 de junho de 1980, no Rio de Janeiro.

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