Evolução
Depois da vida outras mortes viverão
Trazendo o pólen dos silêncios insepultos
Nos ventos desatados pelos prantos.
Depois do amor outros cansaços se levantarão
Marcando as carnes gretadas pelo tédio
Na aparência de satisfação.
Depois da virgindade outros mercados surgirão
Vendendo os corpos fecundados
Sob o prazer, o asco e a exaustão.
Depois dos túmulos ficará o pó dos ossos
Cobrindo as imagens mutiladas
Pela consciência insone dos enfermos.
Depois da colheita outros frutos apodrecerão.
Outros rebanhos fugirão das pestes
E novas águas brotarão do solo novo
Removendo os universos tombados.
Depois do sono agitado da memória
Outras lembranças vestirão outros sentidos
Com o manto insistente do remorso
E com a palavra fatal da solidão.
Depois da invasão da alma outros massacres se repetirão
Em destinos de sangue e maldição
Cultivados em rancores dormidos,
Depois da morte outras vidas surgirão
Carregando consciências em angústia
Corpos de amores saturados
Olhos vazados em dores ancestrais
Vencendo os múltiplos limites do tempo
Que levam aos abismos das mortes reais,
Depois do vácuo
Outras vidas mortas nascerão.
℘
Guerreira
No espaço que tem a medida do eterno
Despojei o meu corpo de todas as reservas humanas
E joguei a minha alma
Na vala comum do Universo.
Dei meu cantos às sombras dispersas
E o meu pranto à terra morta.
Ladeei risos, rolei montanhas,
Mutilei-me no acre silêncio
E anulei as graduações do meu pensamento,
Enxotei o espectro da minha curiosidade
Na vida dos meus sentidos,
Interceptei aos meus ouvidos
O regresso da minha própria voz,
Levei o meu raciocínio
Ao abismo tenebroso do ceticismo
E afoguei o meu espírito
No volume surdo das sufocações sem causa.
Contemplo agora a minha dissecação,
A nudez da minha vontade inerte,
A chaga profunda nas carnes dos meus sonhos
E a dolorosa morte sem continuidade
Que pisa lentamente as minhas frágeis recordações.
Descarnada e decomposta,
Largada no despudor
Pronta estou
Para prostituir-me com todos os acontecimentos.
***
Pensamento
Com o cansaço frio e a dor mansa
Tenho nos olhos uma solidão crescente
Há um som de palavras na distância
Dando à vida uma treva permanente.
Escondo-me da paisagem existente,
Das horas gravadas na memória,
Penso às vezes que sou forma ilusória
Arrastando esta alma tão doente.
E concentrada em medos e horrores
Deu ao pensamento outra distância
Sob as lágrimas do pranto que ainda posso.
É que dentro de todos os destinos
Aturdida por dores diferente
Sou aquela que agora é pó e ossos
Sobre tudo que fui antigamente.
⚜
A imprecavida
Contemplei a véspera da minha vida
E não fixei o mistério que rondava diante o amor
Envolto na túnica da morte.
Meditei sobre as distâncias
E não senti o tempo recolhendo
Meus ímpetos selvagens
E as palavras sem definição.
Olhei as rosas em botão
Mas esqueci de preparar a memória
Para o instante supremo e justo
Do seu perfume.
Aceitei a alegria da liberdade
Sem pensar nos grilhões da minha concepção.
Desejei o universo
Sem prever a luz mágica do destino
Que me devolveria ao desespero.
Procurei as multidões
Sem saber que mergulhava na mais densa das solidões.
***
Acalanto
Oh se a vaga música
Ouvida no pensamento caído
Consolar pudesse
A nostalgia do gesto perdido,
Se o tremor dessa canção sutil
Despertasse o olhar às paisagens
Sem que passar pudesse
A lamentação das velhas imagens,
Se ao menos essa cantiga distante
Que mata a palavra sugada
Pelo tédio e a solidão
Ao corpo deixasse
O silêncio sem dimensão,
Eu diria que o meu destino
É rio calmo e sereno
Contornando sem segredos
Um frágil e pequeno.
℘
Aspiração
Antes que vingue outra esperança
Quero as sombras do branco espesso.
Antes que mais uma insônia se cumpra
Quero o torpor no abismo indecifrável
Do espírito amortalhado.
Antes que o pensamento acorde
E descubra os espaços petrificados,
Quero narcotizar-me sem sonhos
E deitar-me no mundo sem sombras,
Sem palavras nem gestos.
Antes que alguma crença me recolha,
Antes que eu entenda o obscuro,
Antes que o sensível me assalte,
Antes que eu distinga na lonjura
A morte da estrela cintilante,
O êxtase da solidão vertical,
Quero ser coisa sem motivo
Entregue aos ventos sem destino.
***
A razão de eu me gostar
Eu gosto da minha forma no mundo
Porque representa uma fagulha,
Porque mostra um instante doce e perverso
Da ideia, do gesto e da realização
De Deus no Universo.
Eu gosto dos erros que pratico
Porque vejo a pureza colocada na minha essência
Desde o Início
Lutar contra todo o mal que em mim existe
E ser tão maior, que sobre a minha miséria
Ela ainda persiste
Eu gosto de espiar
O meu olho direito
Ver o esquerdo chorar,
De sentir a minha garganta se enrolar de dor
Porque em troca de tanta cousa dolorosa
Ele construiu em mim uma cousa gloriosa,
Que é o amor.
Poemas de:
Adalgisa Nery
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