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Adonis em Ver-O-Poema: O Bosque da Esperança e Alquds em Concerto

Adonis, o poeta, em destaque no site Ver-O-Poema.

Árvore

Os famintos plantaram
um bosque para a esperança
o pranto nele se fez
árvores, e os ramos
pátria para as mulheres grávidas
pátria para a colheita.
Cada ramo um embrião
deitado no leito do espaço
como verde a encantar o pranto
fugiu do bosque das cinzas
e das torres da aflição
levando a queixa de fome
até a natureza.
                    

Árvore do dia e da noite

Antes que o dia venha chego
antes que se pergunte pelo sol ilumino
árvores vêm correndo atrás de mim
andam à minha sombra cálices de flor
e o delírio em meu rosto ergue
ilhas e penhascos de silêncio cujas portas a palavra
desconhece
se ilumina a noite amiga e se esquecem
no meu leito os dias,
depois, quando as fontes rolarem no meu peito
desabotoarem as vestes e dormirem
acordarei a água e os espelhos, e reluzirei
como eles, a lâmina das visões
então eu durmo.
                    

1. De “Concerto de Alquds”

O vento lê a rosa;
o perfume a escreve.
A apaixonada entrou no jardim de sua casa em Alquds1, onde mora o seu amado.
As flores do entorno viraram janela que emoldura agora seus passos.
Ela ri e diz:
Então, devo de novo costurar uma roupa para cada flor?
Ontem, quando a encontrei, a noite assoprou em meus ouvidos:
Para a rosa, o perfume é um filho,
mas já nasce crescido.
(tensão, morte, captura, socorro, extintores, vítimas,
vereditos, proibição, insurgência, infração, mérito, detidos, detenção, prisão,
destruição, ocupação)
Eu disse à minha imaginação: Ouse, coloque as mãos nos ombros de Alquds.
Eu disse a Alquds:
Por que eu, vindo até você, só sei andar para trás?
(terror, sequestro, lado desconhecido, recrudescimento,
acusação, negação, óbito, corrupção, infiéis, falsificação, ofensivas,
violência, sentença, regra, risco, conflito, domínio, refúgio, invasão, saque)
O caminho é um fio de aranha. Universo clarividente tragado por
universo cego. Cidades são agonia. Tempo é um pombo que passa.
Até quando dormirá, céu, nas mãos de uma terra vermelha?
(mísseis, gangues, seitas, rituais, ataques, minas, comércio,
luta sectária, bombardeio, divisão, calmaria, senhoria, revenda, membros e
órgãos decepados, cadáveres, lutas, aliados, inimigos, armados, assassinatos,
tribos)
Criança em forma de caixão carregado sem rumo por mãos
invisíveis. Digam para a eternidade:
Seu grupo, que comanda o teatro,
foi engendrado por um barro chamado morte
e revestido por um tecido chamado ar.
(petróleo: urânio, estrondo, munições, escândalos, investigação,
contrabando, regulamentos, direita, esquerda, negociações, traição, tortura,
êxodo...)
“Na Lua há uma fenda erótica cavada pela política”, disse um
astrônomo.
“Na Terra há buracos que parecem os do corpo humano”, disse um naturalista.
E entre os dois, uma cabra montês se transforma em fita vermelha que envolve o
navio, enquanto o tornozelo do ar guia sua dança ao ritmo da poeira atômica.
Linhas, fios tecem mantos eletrônicos
para os viajantes que desconhecem o lugar,
e ele próprio os desconhece.
    Livros se amontoam e debaixo deles cabeças desabam por
argumentos frágeis que a caneta milagrosa rabisca.
Eu não disse isso a nenhum anjo, disse-o a um meteoro mudo, mal se acendeu
apagou.
Há quem se lambuzou e foi virado então do avesso.
Há quem leu e foi tocado pela opressão da ignorância cabal.
E há um terceiro, ainda, e um quarto, só sombra desse.
O terror é em si melodia na harpa do sol.
̶  “Ó Enviado de Deus, quem foi o primeiro a entrar no
Paraíso?
̶  Os profetas.
̶  E depois?
̶  Os mártires.
̶  E depois?
̶  Os muezins da Casa Santa”2.
“Nenhum servo ganhou martírio, no deserto ou no mar,
sem antes ouvir o chamado dos muezins da
Casa Santa no céu”3.
“A rocha da Casa Santa está em cima de uma palmeira,
e a palmeira, em cima de um dos rios do Paraíso,
debaixo dela está Ássia, mulher do Faraó4,
e está Mariam, filha de Imran5...
afinam as cordas das gentes do Paraíso para o dia da Ressurreição”6.
O que escrever, pois, e como?
Tem sentido o que não entra na língua?
Por que as tristezas da mente são túmulos para os desejos do corpo?
̶  Só escrevemos uma coisa se a virmos de fato
e de tal modo como se a coisa mesma nos visse.
̶  Escrita sem abismos, sem identidade.
                    

Notas

  1. 1 Como é chamada em árabe a cidade de Jerusalém.
  2. 2 Jábir, colecionador de hadith, ditos do Profeta Muhammad, nasceu em Yathrib (Medina) em 607, ano 16 antes da Hégira, como se denomina a Era Muçulmana, e morreu em 697, ano 78 da Hégira. Casa Santa traduz Bayt Almaqdis, variante de Alquds (a santidade).
  3. 3 Ubay Ibn Kaab, nascido em Yathrib e morto em 649, ano 30 da Hégira. Letrado, atribui-se a ele a primeira versão escrita das suras ditadas pelo Profeta.
  4. 4 Ássia Ibnat Muzáhim, mulher do Faraó do Egito na época do Êxodo, mãe adotiva de Moisés, Mussà em árabe.
  5. 5 Mariam Ibnat Imran, nos relatos corânicos, filha de Imran e Hanna e mãe de Issà, é Maria, filha de Joaquim e Ana e mãe de Jesus, na tradição cristã.
  6. 6 Ubada Ibn Assamit, 585-655, 38 antes da Hégira – 34 H., guerreiro das hostes do Profeta e, logo, dos primeiros três califas.
Foto do autor

Quando era adolescente, o poeta sírio Ali Ahmad Said Esber decidiu mudar de nome. Escolheu o pseudônimo Adonis para assinar os poemas que enviava para revistas literárias. Adonis nasceu em 1930 no vilarejo de Al-Qassabin, no oeste da Síria. Começou a carreira há 80 anos, ainda criança. Foi nesse ano que recitou um poema seu para o presidente Shukri al-Quwatli, que visitava a vila. Foi estudar em Damasco e, em 1956, se exilou em Beirute, onde editou diversas revistas literárias influentes. O poeta se instalou depois em Paris. Ele tem atualmente (2025) 95 anos de idade e é amplamente considerado o maior poeta árabe vivo da atualidade.

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