Didática
É uma aprendizagem lenta e difícil
a solidão.
Exige uma técnica
que não se aprende
nos bares,
que não se aprende
no mar.
Aprende-se com o fraquejar
dos melhores amigos,
mas sobretudo se aprende
na multidão.
É uma aprendizagem lenta e difícil
a solidão.
§
Sobre mães e plantas
Dizem que samambaias
são mais antigas
e resistentes que nossas mães.
É mentira. Tua mãe
te espera desde eras
glaciais, na varanda
abandonada, na xícara
onde tomaste teu último
café. No espelho que refletiu
teu cabelo antes da partida.
Se ela mantém a porta
fechada nos dias de sol,
é para não ofuscar
o brilho que ficou de teu
rosto quando lhe disseste:
fica assim não, mãe,
logo logo eu tô de volta.
§
Homem à noite
Do quarto alugado
no terceiro andar
você vê a noite do país.
Sob a paz ociosa
muitas crianças
dormiram sem jantar
e, nesta rua mesmo,
uma mulher desempregada
apanha do marido.
Que mundo injusto, você diz,
e fecha a janela.
Ao amanhecer,
você e esse homem
tomarão o mesmo ônibus
no caminho do trabalho,
e a noite do país
pesará inteira
sobre teus olhos.
Então você lembrará:
não faz muito tempo,
alguma luz habitava
as noites do meu país.
Que sentimento estranho,
desejar a luz
que não mereceu
tua coragem.
§
MS802
Um avião desaparece
no mar Mediterrâneo.
Ainda não é certo
se desapareceu
no mar Mediterrâneo.
Decolou de Paris, isso é certo.
Talvez devêssemos dizer apenas:
um avião desaparece acima
do mar Mediterrâneo.
Levava 66 pessoas.
O mar permanece intacto.
§
Câncer
Nunca diga a palavra nunca,
você dizia.
Acenda um cigarro
engula o escarro
assopre a espuma mas nunca
nunca use a palavra nunca.
Algumas vão escapar
pelas pontas dos dedos
algumas vão grudar em você
outras vão cair
e despedaçar.
Você se mantém impassível,
são apenas xícaras.
A velhice não chega para todos,
essa é uma verdade feliz.
Posso ouvir sua voz no fundo do vídeo,
tínhamos cigarros e ríamos de tudo
brincávamos de horóscopo
mas evitávamos a palavra câncer.
A velhice não chega para todos —
essa, a verdade mais triste.
Nunca trate mulheres
como xícaras nunca
nunca espere a cura
nunca ame depois
nunca despreze a palavra nunca.
Você morreu aos trinta
com um tiro na nuca.
Mas evitávamos a palavra câncer,
não foi nossa culpa.
***
Autor
-
Eleazar Carrias é poeta e pedagogo. Cursou o doutorado na Universidade Federal do Pará e o mestrado na Universidade de Brasília, ambos em educação. Publicou os livros Máquina (Urutau, 2021), Regras de fuga (e-galáxia, 2017; Urutau, 2023), e Quatro gavetas (Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves, 2009), este vencedor do Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura – Poesia. Em 2023, pela editora Fictícia, publicou a plaquete Perder Partir. Em 2024, venceu o prêmio Deus Ateu na categoria Poesia Nacional. Com Máquina, foi semifinalista do Prêmio Oceanos de 2022, finalista do 4º Prêmio Mix Literário e, em 2025, vencedor do Concurso Literário C.F. Ramuz de livros a serem traduzidos, da editora suíço-brasileira Helvetia.