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“Alguma luz habitava as noites do meu país.” – A poesia de Eleazar Carrias

Didática

É uma aprendizagem lenta e difícil

a solidão.

Exige uma técnica

que não se aprende

nos bares,

que não se aprende

no mar.

Aprende-se com o fraquejar

dos melhores amigos,

mas sobretudo se aprende

na multidão.

É uma aprendizagem lenta e difícil

a solidão.

§

Sobre mães e plantas

Dizem que samambaias

são mais antigas

e resistentes que nossas mães.

É mentira. Tua mãe

te espera desde eras

glaciais, na varanda

abandonada, na xícara

onde tomaste teu último

café. No espelho que refletiu

teu cabelo antes da partida.

Se ela mantém a porta

fechada nos dias de sol,

é para não ofuscar

o brilho que ficou de teu

rosto quando lhe disseste:

fica assim não, mãe,

logo logo eu tô de volta.

§

Homem à noite

Do quarto alugado

no terceiro andar

você vê a noite do país.

Sob a paz ociosa

muitas crianças

dormiram sem jantar

e, nesta rua mesmo,

uma mulher desempregada

apanha do marido.

Que mundo injusto, você diz,

e fecha a janela.

Ao amanhecer,

você e esse homem

tomarão o mesmo ônibus

no caminho do trabalho,

e a noite do país

pesará inteira

sobre teus olhos.

Então você lembrará:

não faz muito tempo,

alguma luz habitava

as noites do meu país.

Que sentimento estranho,

desejar a luz

que não mereceu

tua coragem.

§

MS802

Um avião desaparece

no mar Mediterrâneo.

Ainda não é certo

se desapareceu

no mar Mediterrâneo.

Decolou de Paris, isso é certo.

Talvez devêssemos dizer apenas:

um avião desaparece acima

do mar Mediterrâneo.

Levava 66 pessoas.

O mar permanece intacto.

§

Câncer

Nunca diga a palavra nunca,

você dizia.

Acenda um cigarro

engula o escarro

assopre a espuma mas nunca

nunca use a palavra nunca.

Algumas vão escapar

pelas pontas dos dedos

algumas vão grudar em você

outras vão cair

e despedaçar.

Você se mantém impassível,

são apenas xícaras.

A velhice não chega para todos,

essa é uma verdade feliz.

Posso ouvir sua voz no fundo do vídeo,

tínhamos cigarros e ríamos de tudo

brincávamos de horóscopo

mas evitávamos a palavra câncer.

A velhice não chega para todos —

essa, a verdade mais triste.

Nunca trate mulheres

como xícaras nunca

nunca espere a cura

nunca ame depois

nunca despreze a palavra nunca.

Você morreu aos trinta

com um tiro na nuca.

Mas evitávamos a palavra câncer,

não foi nossa culpa.

***

Foto do autor

Eleazar Carrias é poeta e pedagogo. Cursou o doutorado na Universidade Federal do Pará e o mestrado na Universidade de Brasília, ambos em educação. Publicou os livros Máquina (Urutau, 2021), Regras de fuga (e-galáxia, 2017; Urutau, 2023), e Quatro gavetas (Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves, 2009), este vencedor do Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura – Poesia. Em 2023, pela editora Fictícia, publicou a plaquete Perder Partir. Em 2024, venceu o prêmio Deus Ateu na categoria Poesia Nacional. Com Máquina, foi semifinalista do Prêmio Oceanos de 2022, finalista do 4º Prêmio Mix Literário e, em 2025, vencedor do Concurso Literário C.F. Ramuz de livros a serem traduzidos, da editora suíço-brasileira Helvetia.

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