
LOGOS
Para Haroldo de Campos
Azulejar o verbo:
catártica construção
da cérvix ao hálux
do tálamo ao cóccix
Azulejar palavras
na geometria do divino:
O logos encarnado
está morto e sepultado
O senhor do exército
pulsa no alfabeto
repulsa a cadáveres de banquete
Renasce em sílabas embaralhadas
aglutinadas e cerúlicas .
Uma viagem cervantesca
não se mede em centíares
ou cêntuplos nem centavos
Uma viagem concreta
mede- se em centelhas
Não fosse a cabeça
homem do centauro
haveria o homem libertário
Hégira do alfabeto
de Maomé à Medina
da Paulicéia ao galpão
Um estoque de hectares
polinizados de letras
Caligrafia do quantum
radiografia do verso
Não fosse o neoliberal
a formatar a ordem
com réguas e compasso
não beberíamos coca- cola :
Inventaríamos a contradança
a contextura, a contra- capa
na contracorrente
§§
HELIOTROPO
Gira
Jirau
Jogo de capoeira
Gira homem
Lobisomem
Tapete de girassol
Gira
Jerimum
Girassol tem gineceu?
Gira saia
Ialorixá
Nessa gira d’Ogunhê
Gira
Giroscópio
Trabalho de terreiro
Pomba gira
Aguardente
Jinja ,gita, mojubá
Gira
Ginete
Gamela de ginja
Mesa posta
Jiló
Ginga sertaneja
Gira
Girândola
Jijoca a reluzir
Da sementeira
heliantos
Conta de gelosia
Gira
gigantesca
égide de justiça
Gira mundo
a gestar
jardins de girassóis
§§
Hermenêutica da morte
I
Meia idade:
Cartilagens rangem
Canal da medula
Comprime o ciático
Por dentro o oco:
Nacos do existir
Poetas ainda escrevem
poemas de amor
II
Ar rarefeito, dispneia
Pede guelras e vento
unguentos ,aspirinas
A idade recontada
pelo tanto de drágeas
e escalda- pés
Tempo de gerânios
Na olaria celestial
III
Como se chama mesmo
aquele espaço envidraçado
de onde se vê
cataventos coloridos?
Alpendre? Água- furtada ?
Água-morta?
Um presságio …
IV
Acende- se a girândola
Reza- se uma missa
(em sufrágio da alma de …)
Dele, o semimorto
Dele, o semitonal
Ele, logo mineral
cujo passamento
Resume-se a um epitáfio
V
Aqui jaz um poeta :
O homem oceânico
O homem pagão
Eco das angústias
de paixão furta-cor
Homem pedra e faca
de cujo gume se faz verbo
Descansa sobre tule
VI
Nunca em minha vida morri
Portanto não imagino
o momento aguaceiro
o momento póstumo
o último olhar para o teto
o passaredo em alarido
Ramalhetes de cravos vermelhos
Alguém chorando por mim

SONILÓQUIO
Ela se aproxima
A ninfa,
a pequena morte
Como grua cinza
carne trêmula
dissonante
Ressoa leve:
fluxo de Rio
veloz e arredio
Do hálux à pele
do córtex ao sangue
melancolia, mioclonia
Uma moenda gira:
O cérebro- ânfora
a voz descarrilhada
E mussita, mussita :
rasgo, réstia de luz
suspensa por roldanas
§§
PERSEIDAS
I
Sou estrangeira
em minha própria terra
Estrelas cadentes
sobre meus cabelos
Poeira cósmica
a luzir em minhas órbitas
Sou a estranha deitada
sobre pedra gris
Contemplo o reverso
da ideia do existir
II
Um sonho acordado
é um dejá-vù
crivado de imagens
ígneas e obscuras .
Meu corpo sobre a pedra
fósseis sob minha pele
Existo como islamita:
sou rocha bruta
e paleta de cromo
III
Se por mero acaso
ou telepatia pura
quisesses entender
a ionosfera
ou a Constelação de Aquário
verias um opérculo
luzidio na vereda
do meu decote
O calcáreo
a tintura de ópio
ou lêmure voador:
são partes do meu eu
IV
Se Mefistófeles
falasse em iídiche,
o estridor de sua voz
mataria pomos
flores , luzes
Buscaria a mim
(a islamita)
Arrancaria meus rizomas
sem anestesia:
Na olaria do ódio
não há estrelas cadentes
§§
ARIADNE
Quimo indigesto
tanto quanto tudo .
Póstumas lembranças
Bile viscosa ,flutuante
Memórias vão e voltam
Sigo o caminho de volta:
sombras, luzes, espíritos .
Desenrola-se ali o fio
( Como em Creta )
E decreto ,como em tudo
neuroses, amargor
que não consigo digerir.
Volto e retorno como lastro.
Desenvolvo por anos à fio
ideias atreladas
à um nó principal:
Homem no corpo
Cabeça de touro .
Seus pelos roçam minhas mãos .
Sinto medo mas desenrolo
o fio central de toda rede :
sou a Vênus venal largada
em ilha e labirínticas vielas
Pastoreio minhas ovelhas
Revolvo minhas terras
Caminho de volta não há
***
Aqui a poesia é tessitura de mitos, corpos e cosmos.
O verbo vivo e crítico. Movimento circular, entre memória, morte e renascimento, costurando imagens sagradas, populares e cósmicas.
Marcia Tigani cria um labirinto sensorial, mistura existencialismo, transcendência e resistência poética.
Autor
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Marcia Tigani, nascida na São Paulo dos anos 60, é médica, psiquiatra, escritora e poeta . Desde 2010 participa ativamente de blogs,saraus, sites, antologias e plaquetes de poesia, publicando seu primeiro livro solo em 2012 na Bienal Internacional do Livro de São Paulo (" Caminhante: prosas e rimas ao vento" Editora Somar ) .Seguiram- se mais dois livros de poesia solo (" Navegações e Paragens" pela Editora Tachion e " Os olhos de Kali" pela Editora Penalux). Desde 2016 é aluna dos cursos de escrita literária e oficinas de criação poética do professor, poeta, ensaísta e escritor Claudio Daniel . Seus poemas podem ser lidos no seu site de escritora (www.marciatigani.prosaeverso.net )
Delicioso, para quem conhece a Vida é a História
Obrigada por sua leitura e comentário!,