Paixão pela leitura!

“Boca de Cena” poemas do belo livro de Alfredo Rossetti

NÓS E EU

Se me quiseres junto, aviso
Que não venho só – não sou só.
Tenho meus sonhos, envoltos em mim,
Como a casca da cortiça no sobreiro,
Malha colante do corpo ensopado
De tentativas vãs, todas símbolos
Das horas roubadas durante o tempo
Em que deixo de viver e invento
Vários jogos sobre o que me cerca.
Todos (ou a maioria) de retificação.

Se me quiseres por perto, previno
Que a metade do que vivo passo
Sonhando com a outra metade:
A que aparenta o que deveria ser.
Entre as duas uma linha cega
Divide todas minhas andadas;
Não se confrontam nem querem.
Apenas delimitam o que sinto:
Que uma morre por conduta
Na procura do ad multo anos,
E a outra, de sorte etérea,
Canta e se resguarda em versos.

A do chão é uma espécie de nós,
E não se reluta em sorrir ao Sol.

Mas, a das sombras das palavras,
Só se mostra como um eu de asas.

O CAMINHO DA VIDA

              pensando em Kurosawa

Na minha cidade não havia bondes.
Mas sei que os perdi. Várias vezes.
Certa feita, peguei o destino e me fui
A um lugar onde não soube remar.
Encontrei bondes que não eram meus.
E meus barcos e velas submergiram
No asfalto de minha indefinição.
Voltei. E continuei vendo bondes
Imaginários, passando dosdeskaden
Defronte meu coração de fantasia,
No relógio imenso e febril da estação
Do trem, que velejava por cafezais.
Talvez por isso não me tinha cais,
Nem mar, baía ou costa navegável.
Apenas vielas e córregos interiores
Pensados como uma imensidão.

Hoje sei que foram vidas que perdi.
Uma a uma se extinguiram no agravo
Do amarelo de abandono. Passei
A locomover-me por versos singrados
Nos trilhos, que se tornaram fábulas
De mim mesmo. Com montanhas, bondes
E lagos. Todos eles de Era uma vez.

NO BANCO DO JARDIM

O ponto é negro no papel em branco.
Escrevo e leio em negro no branco do papel.
À noite leio no negro da tela palavras brancas.
E a tudo me traz o que quero e preciso.
Fossem amarelas, vermelhas ou de burro
Quando foge, seria exatamente o mesmo.
Qualquer que seja a cor, a palavra intolerante
Quer dizer sempre intolerante, nada mais.

MANHÃ AZUL

Um pequeno pássaro
(enquanto o Sol me saúda)
Sana minhas dúvidas.

PÁSSARO DE INVERNO

Trago a vida de hoje como passos
Sem roda na cidade despreparada
Para sonhos lentos. Junto a degraus
(muitos) coleciono anacronismos.
Meu pai sentenciou num dia de riso
De largueza cínica que sou do contra:
(vide todos estes versos)
Tomo banho em águas de rios repassadas.
Nas tardes sento em nuvens por aí,
Repartido em grande leque de quereres.

Autor

  • Alfredo Rossetti mora em Ribeirão Preto, SP. "O resto de minha biografia é uma condensação de perplexidades, expostas neste sítio "Trem das palavras". Fora do que escrevo, tudo é apenas uma questão de estar em algum lugar. Louvo a intrínseca necessidade de expressar-me, arma contida que consegue decepar os totens que se me apresentam.

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