Leia um capítulo do romance “Abafada”, de Marcela Fassy – Vencedor do Prêmio Caio Fernando Abreu 2024

Capa do livro ABAFADA - Marcela Fassy

ABAFADA

Marcela Fassy

Capítulo 1

(se me permite aqui um parêntese, a minha cabeça é uma geringonça muito mal tratada, sinto vontade de arrancá-la pelo menos uma vez por dia, por enquanto vou conseguindo equilibrá-la em cima do meu pescoço mas sinto que a qualquer momento ela pode deslizar, cair no chão e se quebrar como uma jarra de cerâmica, dessas que as mulheres fazem nas pequenas cidades do Jequitinhonha, tão bonitas (

as jarras, não as mulheres, mas também as mulheres, eventualmente, mas veja, já estou criando um parêntese dentro de outro parêntese dentro de outro parêntese, isso deve ser proibido em algum lugar (

sim, eu falava da minha cabeça deslizando de cima do meu pescoço como um bonito jarro de cerâmica, até que não é uma imagem feia, um jarro de cerâmica com uma cabeça desenhada (

não que minha cabeça seja particularmente bonita, pronto, outro parêntese, falo de uma cabeça de cerâmica com olhos, boca, nariz, orelhas, acho que já vi uma dessas naquela loja de artesanato do Beco da Tecla, creio que era para colocar flores, ou talvez fosse uma moringa d’água dessas que a gente deixa na cabeceira da cama para manter a água sempre fresca, uma cabeça de cerâmica deslizando, caindo, quebrando e se partindo em mil caquinhos, toda aquela água esparramada, escorrendo pela calçada, tudo o que está contido em minha cabeça, a massa encefálica, os ossos do crânio, coisas gosmentas, pensamentos, delírios, os sonhos dos quais consigo me lembrar, as partes inconscientes, tudo escorrendo pela calçada (

fluxo de consciência, chamam (

caiu, quebrou, minha cabeça, um descuido e pronto, já era, começa tudo a escorrer, esse líquido cor de barro, fermentado, desconexo, palavras que jorram, não param de escorrer (

procuro agarrar os caquinhos, caquinhos de cerâmica que escorrem junto com a água, são precários e curvos como pequenas luas de barro ou como esses parênteses que espalho pelo texto, como se fossem pequenos diques para tentar conter a água que corre desembestada (

enquanto você escreve um parêntese se abre, você habilmente mergulha dentro dele e começa a nadar rumo ao outro lado do parêntese, do outro lado existe aquilo que chamam vida, aquilo que eventualmente você vai precisar retomar, você toma fôlego e vai, você sabe que precisa alcançar a beira do parêntese e que o ar aqui dentro não vai durar para sempre, mas ao mesmo tempo você não quer alcançar a beira porque aqui dentro existe um fluxo, o fluxo te impulsiona, te leva, você só precisa se deixar ir (

mergulhar, mergulhar de vez, se deixar afundar, afogar, quem sabe não seria melhor, menos exaustivo, não precisar ficar a toda hora levantando a cabeça rumo à superfície para tomar um pouco de ar, fazendo de conta que está tudo bem, fazendo de conta que você é capaz (

o conteúdo da minha cabeça que caiu e se quebrou formou uma poça, a água é marrom, salobra, a Prefeitura vai colocar uma placa dizendo “imprópria para consumo”, como aquela que colocaram no chafariz da praça, o que foi construído na época do Império e que é cheio de carinhas de cimento com as bochechas dilatadas e as boquinhas em forma de ( ) e de onde escorre a água imprópria para consumo (

que as pessoas consomem, porque é de graça, e dá aflição ver os homens e mulheres que chegam no ônibus da zona rural e eles têm sede e enchem suas garrafinhas plásticas com água imprópria que escorre do chafariz, e dá aflição porque a boca de uma das carinhas foi tapada com cimento e ela não pode respirar e fica olhando para a gente com aqueles olhos esbugalhados como se implorasse por socorro, e as grandes bochechas cheias de ar e a boca tapada de cimento, parece que ela vai sufocar ( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )( )

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Autor

  • Marcela Fassy

    Marcela Fassy nasceu em Belo Horizonte, em 1984. É historiadora (UFMG), Especialista em Artes Visuais (Senac/MG) e Mestre em Ciências Humanas (UFVJM/Museu do Louvre). Seu livro de contos As Putas Escrevem (Urutau, 2024) recebeu menção honrosa no Concurso Nacional da UBE/PB. Foi finalista do Prêmio Internacional Pena de Ouro com um conto integrante do seu livro Oniros (Urutau, 2022). Abafada (Reformatório, 2025), livro vencedor do Prêmio Caio Fernando Abreu 2024, é seu primeiro romance.

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