“Volta aos teus verdadeiros sentidos. Chama o teu verdadeiro ser. Desperta de teus sonhos, que eram apenas sonhos que te perturbavam. Vê doravante as coisas com os olhos bem abertos e atenta para o que descobrem teus novos olhos.”
— Marco Aurélio, Meditações, Livro VI, § 31
É com essa exortação do imperador filósofo Marco Aurélio que convidamos você, leitor, a refletir sobre o propósito mais profundo da literatura: não como ornamento intelectual, mas como caminho de autoconhecimento, de confronto ético e de despertar existencial. A literatura, nas mãos dos grandes autores, espelha a alma humana em suas contradições mais íntimas.
Ao mergulhar na Ilíada, por exemplo, não encontramos apenas a ira de Aquiles ou o heroísmo de Heitor. Encontramos dilemas que ainda hoje nos atravessam: o que fazer quando nossa honra é ferida? Como agir diante da derrota inevitável? Quantas vezes, ao longo do dia, comportamo-nos como aquele menino que, ofendido, pega a bola e vai embora — exatamente como Aquiles no início do poema? A literatura não nos dá respostas prontas. Ela nos provoca.
E é nessa provocação que reside seu poder transformador. Ao nos colocarmos no lugar de personagens como Raskólnikov (Crime e Castigo), Emma Bovary ou Heitor de Troia, ampliamos nossa capacidade de empatia e compreendemos que a experiência humana é feita de matizes, não de binarismos e maniqueísmos. Ninguém é inteiramente bom ou mau. Todos carregamos sombras e luzes. E é ao reconhecer isso no outro que começamos a aceitar e, quem sabe, superar, nossas próprias falhas.
A literatura também nos ensina humildade. Ler Homero, Dostoiévski ou Machado de Assis não é um ato de erudição, mas de entrega. Não há “analfabetismo funcional” que resista à curiosidade verdadeira. Como disse um estudante: “Nunca imaginei que Homero fosse algo acessível para mim”. E era. E é. Basta ter coragem para abrir o livro e uma boa orientação, um guia paciente ao lado ajuda muito.
Longe de ser catequese ou moralismo, a grande literatura abraça a complexidade da vida: com sua loucura, paixão, ambiguidade e dor. Flannery O’Connor, por exemplo, escritora católica do sul dos Estados Unidos, jamais reduz seus personagens a exemplos de virtude e pecado. Ela os perfura com a navalha da verdade, sem piedade, sem falso consolo. Porque o escritor não é catequista, é testemunha.
Por isso, a leitura é um ato de coragem. Coragem para enxergar além das ilusões que nos protegem, para reconhecer as máscaras que usamos no cotidiano, para encarar a morte, o amor, a perda, o ridículo; tudo o que nos constitui como seres humanos. E quando isso acontece, despertamos para o mundo como ele é e para nós mesmos, como somos.
Então, leitor, aceite o convite de Marco Aurélio e da literatura: desperte. Leia com os olhos bem abertos. Leia com o coração exposto. Permita-se ser transformado.
Referências
- Marco Aurélio. Meditações, Livro VI, § 31. Tradução adaptada a partir da edição de J. S. R. T. Oliveira (Penguin-Companhia das Letras, 2020).
- Homero. Ilíada. Épico grego atribuído ao século VIII a.C. As personagens Aquiles e Heitor são protagonistas centrais da obra.
- Fiódor Dostoiévski. Crime e Castigo (Prestuplenie i nakazanie, 1866). O personagem Raskólnikov é o protagonista cuja crise moral estrutura o romance.
- Gustave Flaubert. Madame Bovary (1857). Emma Bovary é a personagem central, cujas aspirações e desilusões simbolizam a melancolia moderna.
- Flannery O’Connor. Contos como “Uma Boa Coisa Difícil de Encontrar” e “O Artista Obscuro” (em Uma Boa Coisa Difícil de Encontrar, 1955). A autora é conhecida por retratar a complexidade moral sem concessões idealizadas.
- “Sem fim”, “Svalbard” e outros belos poemas — Beth Brait Alvim
- Influência das Comunidades para Edificação de uma Educação Melhor em Moçambique
- “Cosmópolis” – A maestria da escrita de Carlos Pessoa Rosa
- A crônica viva de Fernando Dezena – De Sarney a Paquetá
- ‘O que se faz na Cop, fica na Cop’ – por Edyr Augusto Proença
- Como a literatura nos desperta para a vida | Ver-O-Poema






