
Susanna Busato
O que esperar do livro Cabeza de serpiente emplumada, que o leitor tem em mãos? O título remete ao nome de uma divindade asteca: Quetzalcoatl, o deus do vento, do ar e da aprendizagem. A epígrafe de abertura é retirada da obra Finnegans wake, de James Joyce: “Unuchorn! / Ungulant! / Uvuloid! / Uskybeak!” (na tradução de Augusto de Campos, em Panorama do Finnegans Wake, de 1971: “Unucorno / Ungulante / Uvulóide / Uisquisito”), e aponta para o espírito revolto que está na base das intenções da construção do livro. Claudio Daniel apresenta seu livro como sendo uma “experiência estética”. Seu Cabeza de serpiente emplumada reúne de modo alinear seções de poemas autorais e de traduções, que versam sobre temas diversos, ainda que possamos encontrar algumas linhas afins. Tais linhas referem-se a um “mal-estar” sentido por aquele que caminha
só numa noite
escura
com os cabelos
já esbranquiçados
e as mãos
trêmulas
mudas.
Diferentemente do sujeito lírico de Carlos Drummond de Andrade, em A máquina do mundo, sua presença no “aqui e agora” é ainda de resistência e luta. O olhar atônito do sujeito poético de Cabeza de serpiente emplumada volta-se para uma reflexão sobre o existir, sobre o mundo em guerra, e o representa por meio de traduções de poemas, como O impossível, do ativista político e poeta palestino Tawfiq Az-Zayyad, da Epístola a los transeúntes, do poeta peruano César Vallejo, assim como de alguns fragmentos de seu poema Trilce. O poeta convidado, o mineiro de Belo Horizonte Claudio Rodrigues, comparece com seus poemas reunidos na seção intitulada Cabeça emplumada, cuja imagética mítica dialoga com os poemas de Claudio Daniel. O verso “Serpente-luz de tinta e pedra” do poema de mesmo nome conecta-se de modo diagonal com a seção As miliumas cores do azul, de Claudio Daniel, cujos poemas são verdadeiros exercícios estéticos em que a écfrase parece ser um recurso para que, de modo vertical, o verso alcance a complexidade cromático-imagética da composição pictórica. De todo modo, o mergulho na pintura é um exercício poético e leva o autor a experimentar as possibilidades semânticas da palavra no processo combinatório. Não há propriamente uma busca pela descrição de um quadro em particular, mas a expansão da qualidade pictórica da cor, que o poeta busca adensar, ou melhor, traduzir em palavras. Monet, Paul Gauguin, Van Gogh, Klimt, Bacon, Chagall e Edward Hopper são os pintores do Ocidente homenageados; mas o poeta não se esquece da pintura oriental, o thangka, de origem tibetana, na qual a paráfrase crítica homenageia o poeta Rubens Jardim, que nos deixou em 2024.
Eis o mito do deus da aprendizagem representado pela figura mítica da “cabeza de serpiente emplumada”, que se mostra no exercício estético do poeta.
O leitor já pode ter uma ideia da direção diagonalizante ou, porque não afirmar, barroquizante do livro. Talvez inspirada livremente nas viagens estético-críticas do poeta Haroldo de Campos, nomeado no título do poema-homenagem e referendado no seu interior, Grafito para Haroldo de Campos. A direção mítica do pensamento, as referências a poetas, obras e pintores, o emprego de duas línguas – o português e o espanhol – as referências culturais do Oriente e da América Latina, tudo prolifera e instiga o leitor a procurar o vasto repertório interno do livro.
Mas nada é gratuito em Cabeza de serpiente emplumada. Há o incômodo que impulsiona e motiva:
O que posso dizer enquanto
o mundo, esse lugar
faminto, infame, infausto
lentamente se despedaça?
A estrofe de um dos poemas da seção Doze canções impronunciáveis poderia ser a lança empunhada pela “serpente emplumada”, cuja cabeça é a do poeta, esse ser que reorganiza os pedaços do mundo e os oferece como mosaico ensaístico de seu tempo e de seu lugar. Não à toa
O dedo
do vento
vira as páginas
do livro
e a história
se desfaz
para que o poeta, “enquanto mísseis voam sobre Gaza”, venha e reconte imageticamente a tragédia. Há engajamento estético-político na voz dos poemas. Engajamento assumido por Claudio Daniel de modo claro e honesto: “A noite é o cão do silêncio / em Ramalah”; “A memória é um verme / que rói a carne / e as sombras / intermitentemente” (de Doze canções impronunciáveis), de onde podemos perceber um traço que flerta com alguma poesia do poeta expressionista alemão Godfried Benn, que se alinha ao pesadelo da guerra. Como também na imagem da “menina corcunda” que joga pedrinhas na rua e tem seu corpo lançado na mesa de cirurgia “enquanto mísseis voam sobre Gaza” e “flamingos / flertam com o apocalipse”. Em outro momento, “Luz, ou / reflexo / do inferno?”, pergunta a estrofe. Talvez a resposta mais sensível à pergunta colocada pelo próprio sujeito esteja no verso “ ra (1992), de Claudio Daniel, adensa a percepção do cenário assombroso da guerra por meio de uma não-palavra, cuja forma pode atingir conotações diversas.
A poesia, para o poeta Claudio Daniel, tem uma função: a de tecer, por via da imagem, as referências míticas de culturas e sociedades que foram e ainda são submetidas à tragédia da usurpação e da exploração e de cujo horizonte o poeta extrai o pensamento que anima seus poemas por vezes herméticos, justamente porque os caminhos que percorre seu olhar são labirínticos e sinuosos. E ainda que tudo possa ser, é necessário percorrer. Em Cabeza de serpiente emplumada, a poesia performa, de modo híbrido, a voz engajada como voz-magia. O sentido claro e direto se transmuta para o sentido turvo e indireto, levando o leitor a participar da mesma loucura desse deus asteca que envolve o mundo numa espiral de onde ecoam outras vozes para sua surpresa. Eis o que o aguarda.
Susanna Busato é doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professora assistente-doutor da Área de Literatura Brasileira no curso de Licenciatura em Letras e no Curso de Pedagogia, na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho. Como poeta, é autora de dois livros de poesias: Corpos em cena, livro de poesia publicado pela Editora Patuá em 2013, finalista do 56º Prêmio Jabuti de Literatura, categoria poesia, em 2014; e Moldura de lagartas, Selo Demônio Negro, 2020.
Os voos da imaginação de um trovador ultramoderno – Posfácio
Charles Perrone
Na parede à direita da porta de entrada do prédio de Estudos Internacionais na universidade onde trabalhei durante quatro décadas, está gravada a famosa declaração de Sócrates: “Eu não sou um ateniense ou grego, mas um cidadão do mundo”. Essa afirmação do filósofo clássico é a que me ocorre cada vez que penso em caracterizar o projeto poético de Claudio Daniel, nom-de-plume que já indica, com a adoção de um nome trovadoresco provençal, o imperativo cosmopolita do autor e— por que não acrescentar?— seu apego à longa história da lírica, sobretudo a musicada. Desde o início, CD se mostrou mundialista e atraído pelo som, para lembraraquela frase tão apta do mestre Haroldo de Campos: this planetary music for mortal ears. O livro de estreia de CD, Sutra (1992, edição do autor), tem notáveis alusões a autores estrangeiros (o próprio título vem do idioma sânscrito), além de mandolinas, uma canção, uma seção chamada “o inferno musical,” um “Blues” e um “Bolero,” poema habanero que reaparece neste lançamento de 2025. Ora, o primeiro livro do poeta publicado por uma editora marca acentuadamente o seu interesse pelo Oriente; chama-se Yumê (1998), vocábulo onírico japonês. Portanto, Cabeza de serpiente emplumada não é o primeiro título do poeta em língua estrangeira (que poderia ter sido olmeca, maia, ou asteca!). CD afirma na nota introdutória ao volume que buscou “elaborar uma dicção poética diferente daquela de meus livros anteriores”, afirmação da qual se poderia observar “sí, pero no tanto”. Pode haver uma vontade discursiva um pouco mais permissiva em partes, mas os versos, ao todo, ainda vêm imbuídos de consciência musical e preocupação transnacional, e continuam os estilemas de concisão e fragmentação, a carga imagética, as elipses, o cromatismo, o cuidado com mise-en-page.

As doze canções constituem a seção central, pois uma delas contempla um personagem perseguido imaginado cujo nome é o título do livro e liga esta parte à seção final. Estas considerações “impronunciáveis” contém ares pessoanos, gritos de raiva e angústia perante os horrores do Oriente Médio, alusões literárias globais, poesia sonora e, claro, muita musicalidade, às vezes por meio do ritmo. Já a terceira seção passa a favorecer a visualidade. Sete peças provocadas por pintores (mormente europeus) e cenas, portanto no domínio da écfrase (ekphrasis), sendo que o adjetivo ecfráctico lembra aquilo que abre o apetite, no caso para a apreciação artística. O dado cromático aqui poderia até ser uma ligação implícita com o colorido das plumas da serpente. Já o último poema desta sessão, Thangka, evoca o Tibete e, com a dedicatória ao poeta brasileiro Rubens Jardim, funciona como transição para a quarta parte.
A seleção e tradução de poemas de César Vallejo é em si uma declaração: o grande poeta peruano do alto modernismo transatântico merece renovada atenção hoje, mais de cem anos depois de sua obra mais celebrada, Trilce (1922), ser publicada, com ousada combinação de elementos. Ao ver o acréscimo de um fragmento de Altazor, de Vicente Huidobro, haveria que lembrar que o poeta chileno (radicado em Paris) foi quem teve a coragem de escrever “El poeta es un pequeño Dios”. Mas é o poeta-mor Vallejo que inspira o título da outra, composta por uma homenagem ao autor das viagens das galáxias, o bolero re-cantado, e um protesto pouco conhecido. Um trio de poemas que mostra novamente a perspectiva cosmopolita e a combinação de poiesis em si e envolvimento sociopolítico.
Normalmente eu começo a apreciação de um livro de literatura observando o título. No presente caso, finalizo com ela. Já observamos tanto a ligação da sétima “canção impronunciável” com o âmbito do poeta convidado quanto o fato significativo de o livro ter título em língua estrangeira. Tem mais, ela é a dos hermanos em que escreveu Vallejo, o melhor poeta hispanoamericano do século passado, que teve impacto especial em Claudio Daniel. Ora, pensando palavra por palavra, há mais. Cabeza é o topo do corpo (palavra bastante usada e importante ao longo do livro), e sugere, pertinentemente, liderança e pensamento. Serpiente surge com conexões míticas indígenas, mas tem seu significado fundamental no mundo natural animal, e também várias associações, desde a Bíblia até no linguajar popular. Emplumada reforça o aspecto zoológico, havendo a sugestão do voo e, sobretudo neste livro onde a pintura voa, a visualidade: luz, cor, forma, suavidade. E não é que Cabeza de serpiente emplumada reúne tudo isso em sua intrigante multiplicidade?
Santa Cruz, California, 2024
Charles Perrone é professor titular emérito de português e literatura /cultura luso-brasileiras do Departamento de Espanhol e Português da Universidade da Flórida. Principais publicações: Brazil, Lyric, and the Americas (Florida, 2010); Seven Faces: Brazilian Poetry Since Modernism (Duke, 1996); Masters of Contemporary Brazilian Song: MPB 1965-1985 (Texas, 1989), além de Letras e Letras (da Música Popular Brasileira) (1988. 2008). Em 2022, com Ivan Justen Santana, publicou All Poetry, tradução de Toda Poesia de Paulo Leminski. É também o principal tradutor para o inglês da poesia de Augusto de Campos.
INFORMAÇÕES TÉCNICAS:
Título: Cabeza de serpiente emplumada
Autor: Claudio Daniel
Gênero: Poesia
Capa: Pintura de Jeannette Priolli
Editora: Arribaçã
Preço: R$ 55,00
